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O poder de cura dos cães
Hebe e Marcela desenvolveram uma relação muito mais profunda do que a tutora imaginava. Foto: Arquivo pessoal
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Do corredor, ela me observava com olhos de peraltice. Tramava algum salto que desafiasse a gravidade e a lançasse despretensiosamente para dentro do meu quarto, sem que ninguém notasse. Havia certa ingenuidade rabiscada em um plano engenhoso. Ou um plano engenhoso calculado com a mais pura ingenuidade. Mas seus olhos não mentiam: ela queria correr o risco.

Desde quando a médica pediu para que ela ficasse afastada de mim durante as quimioterapias, minha mãe montou uma barricada em frente à porta do meu quarto com caixas de papelão. Assim, ela não poderia entrar. Mas como a porta ficava aberta, ela me acompanhava o dia todo com os olhos. Deitada no corredor, com as patas esticadas, ficava atenta a qualquer sinal. Bastava apenas um estalar de dedos e ela saía em disparada, atravessava o muro de papelão com um pulo desengonçado, e se alegrava no meu colo como se fosse o passeio do dia.

De tanto insistir em não me abandonar por qualquer segundo que fosse, fizemos um acordo: ela voltaria a frequentar meu quarto, mas sem muitas lambidas, nem direito a noites de sono. Cumprimos nossa promessa de manter encontros moderados, e ela nunca foi motivo de uma ida ao hospital.

Cães são uma pausa reconfortante no caos, uma xícara de café nos dias mais tumultuados, um sorriso de graça. Imagino o mundo sem eles: possível, mas um tanto mais silencioso. Cães são uma pitada de misericórdia na receita da vida: quando viu o mundo que havia esboçado, quem nos criou quis dar uma mão amiga. 

Companhia, partilha e conforto

A minha mão amiga bateu na porta em 2017. Eu havia acabado de me mudar para São Paulo, sozinha. Mesmo em meio a 12 milhões de pessoas, barulhos de carros e helicópteros a todo instante na minha janela, a jornada interior de recomeço era solitária. Éramos eu, minha coragem e um apartamento de 40 metros quadrados, poucos acostumados uns aos outros. Meses depois, de modo pouco provável, sem que eu a escolhesse, ela chegou. Mal cabia na palma da minha mão, tinha um choro cansativo e orelhas quase maiores que o próprio corpo. Parecia ser um filhote de cachorro, mas depois eu descobriria que seria minha cura.

Chegou a ficar um mês inteiro sem nome, até que me veio a ideia de chamá-la de Hebe. Começamos como duas estranhas dividindo o mesmo espaço. Ela não fazia questão de ser uma boa companheira de apartamento: arranhava portas, cavava poltronas, mastigava rodapés. Mas ao mesmo tempo em que eu assistia a um apartamento ser comido pelas beiradas, via no espelho um sorriso crescendo. Procurar clínicas veterinárias me fez conhecer melhor as ruas do bairro, assistir a vídeos sobre adestramento me fez aprender algo novo, pedir dicas para outros tutores de cachorros me apresentou alguns amigos. 

Marcela usa bluca branca, blazer preto, pele branca e cabelo curto. Hebe tem a face marrom com trações brancos e o resto do corpo branco. Cães

Marcela Varasquim ao lado de Hebe. Foto: Arquivo pessoal

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Relacionamentos de valor são construções

A cada passeio, eu era mais dela. Meu desafio solitário passou a ser dividido: nas ruas, conversas com outros tutores me salvavam de uma tarde vazia. A Hebe, que dormia no sofá, passou a descansar no chão do meu quarto. Dias depois, nos meus pés. Quando menos percebi, estava atravessando as noites no meu abraço. Foi preciso tempo e paciência para que aquela companheira estranha e destruidora se tornasse tudo o que eu precisava para ser mais feliz.  

Aprendi com ela que, diferente dos produtos prontos que compramos nas prateleiras, o que há de melhor na vida precisa ser preparado por nossas próprias mãos.

Relacionamentos de valor são construções: é preciso ter força e honestidade para consertar os degraus tortos, para só então alcançar o troféu do amor. Cães não são visitas em nossa vida, são pedaços do nosso próprio coração.

Nesses seis anos de companheirismo, Hebe já dançou comigo nos altos, e deitou ao meu lado nos baixos. Aproveitou dias bonitos latindo para cavalos, brincou de raspar a pata na minha careca enquanto eu dormia. Não sei qual barco da vida pegaremos daqui em diante, nem para onde ele nos levará. Mas sei que nenhum mar agitado nos afoga quando estamos juntas: ela sabe transformar provas em um passeio em dia de sol.   

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