Cozinha de afetos
A construção de uma cozinha de afetos vai além do espaço físico, da decoração ou da receita perfeita. Ela é feita a partir daquilo que a gente carrega dentro
A construção de uma cozinha de afetos vai além do espaço físico, da decoração ou da receita perfeita. Ela é feita a partir daquilo que a gente carrega dentro
“Você tem que pegar as mais vermelhas”. Lembro dessa frase até hoje. Eu segurava uma vasilha de plástico nas mãos e minha avó colhia as pitangas maduras de um pé de seu quintal. Eu não devia ter mais do que 7 ou 8 anos, mas lembro do sabor daquele suco até hoje. Anos depois, com meus 30 e poucos anos, estava na Sorveteria da Ribeira, em Salvador, um lugar muito tradicional da cidade, e pedi um sorvete de pitanga. Ao sentir o sabor da fruta meus olhos se encheram de lágrimas, de uma saudade que eu nem sabia que estava ali. Lembrei da minha avó, das tardes que eu passava na casa dela em Recife, nas férias de verão da minha meninice.
Comida para mim tem esse papel de resgatar, pelos aromas e sabores, lembranças queridas e, dessa forma, nos conectar com pessoas que fizeram parte da nossa história, mesmo quando elas não estiverem mais aqui. Pitanga sempre vai me lembrar minha avó Esther, uma pessoa que amei intensamente e que se foi antes mesmo que eu pudesse dizer isso a ela.
Comida e sentimentos
Minha relação com a comida e com os sentimentos que brotam a partir disso é antiga. Quando criança, eu adorava observar minha mãe preparar o almoço, de sentir os cheiros que saíam das panelas, de olhar seus movimentos, seu ir e vir. Era meu jeito de me sentir próxima. Nossa relação não se construiu pelos abraços, beijos e olhares afetuosos, mas pelo bolo pão de ló, pelos bifes suculentos, pelo suflê.
Nunca fui cozinheira exímia – ou pelo menos não me sentia assim. Mas essa história mudou quando meus filhos gêmeos, Clara e Lucas, nasceram, em 2009. Eu queria que eles construíssem a mesma relação que eu tinha com a comida; que percebessem ali a nutrição não apenas do corpo, mas também da alma. Então, segui para a cozinha e de prato em prato sentia que algo forte acontecia quando eu preparava o jantar ou fazia um bolo. Era intenso, nascia dentro de mim e queria ganhar mundo. Eu misturava a farinha com os ovos e meus pensamentos se acalmavam; aspirava o aroma intenso do caju virando suco e cenas da minha infância vinham à tona; tirava o suflê de milho do forno e me transportava para a cozinha da minha mãe.
Nutrir corpo e alma
Foi então que entendi que comida não tem só a ver com nutrir o corpo, mas também a alma. É reconhecer no prato do almoço, no bolo, no aroma da carne sendo preparada, amor, afeto, carinho. É a minha comida, mas é também a minha história. Então, hoje, quando as pessoas falam em “cozinha de afeto”, fico com receio desse lugar que tentam coloca-la, do marketing. A cozinha não diz respeito apenas aos ingredientes que estou usando, aos livros e programas que brotam todos os dias prometendo uma maneira de preparar seu alimento de um jeito diferente, as cores dos armários, ao fogão ou a geladeira incríveis. A cozinha de afeto é tão maior que isso.
Toda vez que cozinho canjica, me transporto para uma viagem que fiz ao Maranhão, ao cheiro da estrada e ao doce que era vendido na beira da rodovia. A paisagem linda, ao namorado que me fazia ver a vida com um colorido antes inexistente. Suflê de milho me remete aos almoços da infância, a cozinha de armários de fórmica verde que estão, até hoje, colorindo o espaço da casa dos meus pais. E isso, independente se estou numa cozinha moderna, retrô, espaçosa ou extremamente pequena, simples e imperfeita. Cozinha de afeto é tudo aquilo que me afeta, que traz, por meio da comida, recordações que fazem parte da minha história, que aquecem meu coração e me lembram quem sou, de onde vim e para onde estou indo.
Construa você a sua cozinha de afeto, sem se preocupar tanto com o lugar, a disponibilidade de metros quadrados ou o dinheiro que você não tem para realizar a obra e deixa-la perfeita. É o que você carrega dentro que ocupará este espaço com alma, amor e afeto. Esse é o principal ingrediente. É aquele que sempre esteve com você: suas memórias, sua história. Bonito né? Eu gosto de pensar nisso quando estou cozinhando. É algo que me traz um sentimento imenso de liberdade para ser quem eu sou, dentro da minha cozinha de afetos.
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