Como ser do bem em tempos de ódio
Será que é possível em meio a tanta polarização, cancelamento e haters manter o espírito elevado e alimentar o bem que há dentro de nós?
A busca pela felicidade abriga muitos caminhos. Há pessoas nas quais a felicidade está na materialidade do mundo, representada pelo dinheiro e tudo o que ele pode proporcionar. Para outros, a felicidade está no reconhecimento pessoal, manifestado pela notoriedade e o prestígio dentro de um grupo. Já para outro grupo, a felicidade vem de conquistas ligadas à vida privada, como morar e comer bem, viajar e ter boas relações com um par, família e amigos. Porém, seja qual for a escolha, todos esses caminhos serão inúteis sem uma vida interior orientada para ser do bem, exercitada na prática das virtudes.
Combatendo os vícios
Para a grande maioria, as virtudes são atitudes e estados de alma abstratos. Assim, para uma compreensão eficaz da importância das virtudes, a didática mais eficiente seria falar do oposto das virtudes: os vícios. Penso que aqui fica claro a sua importância.
Nenhum tipo de vida prospera com vícios. Desde os mais banais — como o vício do celular — até os patológicos, como substâncias ilícitas e jogos. Sobre as drogas ilegais, os jogos e o álcool há uma espécie de consenso porque os seus efeitos são mais visíveis. Porém, os vícios banais da vida de todos os dias, apesar de serem quase invisíveis e mais tolerados socialmente, são igualmente danosos. Empobrecedores da existência, seus protagonistas vivem numa espécie de limbo tóxico.
Os vícios modernos são difíceis de combater porque, para além da nossa natural inclinação para eles, temos o reforço dos outros através de cobranças inofensivas: “você ainda não leu a minha mensagem?”, “você não soube disso?”, “em que mundo você vive?”. Sendo assim, como combatê-los?
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Como praticar a virtude?
E é aqui que a filosofia dá uma contribuição valiosa. Mas, o que é mesmo a virtude? Para começar, podemos acolher uma designação muito simples: a virtude é uma inclinação para o bem. Aristóteles chamava a atenção para o seu caráter prático. “A virtude é uma disposição para fazer o bem e aperfeiçoa-se com o hábito”. Ser virtuoso é sinônimo de alguém com uma boa essência, um indivíduo que realiza boas ações motivadas por índole própria, que busca a excelência no exercício de viver. Para os gregos antigos, as virtudes eram causa e caminho para uma vida com significado, o porto onde a felicidade se abrigava.
Mas, como praticar a virtude no mundo em que caminha em sentido contrário a tudo o que é virtuoso? Não há razão para alarme. Apesar das diferenças de cenário, o exercício das virtudes é tão difícil hoje como era para os gregos antigos. Dentre as correntes antigas, podemos destacar uma que ressurgiu agora com força total: o estoicismo. Todos os ensinamentos dos estoicos nada mais são do que uma busca extrema pela vida virtuosa.
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Virtude em diferentes épocas
Sêneca, um dos grandes representantes do estoicismo, recomendava abraçar as virtudes nobres — como a generosidade — e pô-las em prática, por mais difíceis que fossem. Complexas e contraditórias, as virtudes têm uma prática árdua. O próprio Sêneca debatia-se: foi a vida inteira um estoico que remava contra a maré das inclinações para o epicurismo — que pregava o cultivo dos prazeres (os prazeres simples, bem entendido) como pedra angular da existência humana.
Mais para a frente, na era medieval, Agostinho de Hipona — um pensador cristão de primeira grandeza, canonizado pela igreja católica como Santo Agostinho — debatia-se com o mesmo problema e lamentava que não conseguia implementar o bem que sabia. Agostinho é o autor da célebre invocação “Deus, dá-me moderação e castidade, mas não já”.
Porém, apesar da nossa teimosa resistência, tendemos para as virtudes, inclinamo-nos na sua direção porque precisamos delas para sermos felizes. E as virtudes — assim como os vícios — são muitas. Generosidade, paciência, empatia, bondade, gratidão, moderação, humildade caminham e compõe a vida plena. Algumas virtudes são mais valorizadas do que outras, depende da época e depende do tipo de sociedade. Todos os tempos tem os seus vícios e os desafios. No auge da efervescência cultural e máxima riqueza, a Atenas de Platão e Aristóteles era uma cidade excessiva e sem limites: tudo era permitido. Qual era, então, a virtude mais valorizada: a moderação.
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Ser do bem compensa
Hoje, entre os filósofos vivos, o francês André Comte-Sponville elegeu 18 virtudes para os novos tempos. Gentileza, fidelidade, prudência, coragem, generosidade, gratidão e coragem figuram na sua lista. Para compor o cenário, detectamos uma profusão de estudos sobre os benefícios de virtudes como a gratidão e a empatia. Ressaltado e comprovado os benefícios de ser do bem, alguns países implementaram a empatia como disciplina curricular.… Não é para menos. Vivemos em tempos de ódio, de polarização política, de preconceitos crescentes, de cancelamentos. Hoje, todas as virtudes são necessárias e, além da empatia, a gratidão tem um grande destaque porque ela é perfeita para tempos de emergência virtuosa, pois se trata de uma ponte direta para ser do bem.
O filósofo e senador romano Marco Túlio Cícero afirmava que a gratidão não é apenas a maior, mas a mãe de todas as virtudes. Isso porque todas as virtudes podem ser melhoradas com a prática da gratidão. E não podemos ignorar que talvez ela esteja na moda, justamente porque ela é muito necessária. Ela é uma espécie de pré-requisito para ser do bem, além dos efeitos da sua prática, é uma virtude desinteressada (claro, porque se você é grato esperando uma recompensa, não é gratidão, é retribuição).
Uma pessoa grata é alguém em paz com o passado e o presente. Recebemos algo no passado, reconhecemos e validamos no presente. Portanto, ela nos reconcilia com o que passou e traz satisfação para o presente.
Para tempos onde se valoriza a velocidade, eis um caminho rápido e fácil para ser do bem. Sem contar que a prática das virtudes traz um bônus extra. Como depende da nossa deliberação (pensamento + ação), com esse exercício colocamos a nossa potência de viver ao nível máximo. Fortalecidos pelo exercício da deliberação (pensamento + ação) sabemos que estamos no comando. Mais do que ser do bem, sabemos que somos senhores na nossa casa.
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