Como é passear por um lugar sem enxergar?
Saí em viagem pelo mundo de um jeito diferente: clicando nos destinos por meio de um aplicativo, ouvindo quem passava por eles e o que acontecia por lá.
Saí em viagem pelo mundo de um jeito diferente: clicando nos destinos por meio de um aplicativo, ouvindo quem passava por eles e o que acontecia por lá. Conheça o Blind Wiki, uma plataforma colaborativa para pessoas cegas ou com baixa visão.
Há algumas semanas recebi um convite. Era para um passeio por São Paulo. Mas não um simples passeio. À medida que fossem andando, as pessoas da excursão iriam escutando e sentindo o que se passava no entorno, registrando suas percepções em gravações de áudio no celular para então postá-las ao vivo. Da união dessas percepções, surgiu imediatamente um mapa.
A princípio, pensei que se tratasse de uma excursão de cartografia afetiva. Já ouviu falar? A cartografia afetiva é um exercício de construir um mapa e se colocar nele, e durante esse processo seguir refletindo sobre seu lugar dentro dele, observando seu encaixe ali naquelas linhas e desenhos de acordo com a sua identidade, classe social, gênero, etnia… Algumas escolas trabalham o ensino da cartografia assim, a partir de mapas construídos pelos próprios alunos. Esse tipo de trabalho desperta, em especial, a consciência crítica. Mas era mais que isso.
O convite era para participar da construção de um mapa de percepções ainda mais particulares. O passeio já havia acontecido na Itália, Polônia, Alemanha e Austrália, e agora desembarcava no estado de São Paulo — na capital e em Sorocaba — com paradas em alguns dos mais importantes pontos culturais e de convívio das duas cidades. Antes, porém, eu deveria baixar um aplicativo.
Passear usando mais que a visão comum
Ao entrar no app e no site Blind Wiki, saí em viagem pelo mundo de um jeito diferente: clicando em vários destinos, ouvi quem passava por eles e o que se passava por lá. Em São Paulo, uma pessoa percorria um ruidoso e movimentado cruzamento e revelava um incidente; outra relatava o frescor da sombra passando pelo vão do MASP, na avenida Paulista; na Austrália, alguém contava piadas passeando por uma ponte… Em Veneza, uma caminhante descobria que o beco por onde andava, afinal, tinha saída — mas pela água. Pois é, ele acabava em um canal. Curioso? Bonito? Inusitado? Tudo isso e, quem sabe, até arriscado. Senti um desassossego. E pronto. Senti certo.
A Blind Wiki existe para isso, para chamar atenção, fazer sentir, mexer com a gente. É um mapa sensorial sendo construído em tempo real para e por pessoas cegas ou com baixa visão. E o convite era para acompanhar e participar da construção desse mapa — que também pode contar com as percepções de quem enxerga.
Quando mexe com quem amamos
Justamente na semana em que eu escrevia este texto sobre a incomum “viagem” pela Blind Wiki — espécie de Wikipédia de mapas para pessoas com deficiência visual — algo diferente acontecia aqui em casa modificando minha rotina. Meu pai, um saudável senhor que enxerga muito bem, pediu que eu o acompanhasse na recuperação de uma cirurgia séria nos olhos. Eu nunca havia colocado a visão em perspectiva especial até notar os degraus nas idas e vindas entre a casa e a clínica; até perceber que cortar o queijo mineiro e segurar o bule de café quente sem foco ajustado são atividades de alta periculosidade; até perceber que o lazer favorito do meu pai, tenista, ameaça o que ele mais precisa proteger agora — os olhos.
No decorrer desses dias, eu me senti bastante pequena imaginando por alguns instantes como teriam sido certas viagens se eu não pudesse enxergar. Ou melhor, se teriam sido. A certa altura, finalmente gostei mesmo de ter tomado a iniciativa de fazer de algumas histórias de viagem uma série de curtos podcasts — se a ideia começou como um desejo de ser vista e ouvida, agora percebo satisfeita que ela também inclui quem não vê ou não lê.
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A voz de uma comunidade
Mas tentar fazer comparações seria uma grande bobagem. A proposta da Blind Wiki vai muito mais além. Seu idealizador, o artista catalão Antoni Abad (“homem alto e branco, de óculos e barba e cabelos grisalhos”, de acordo com a devida identificação, por motivos óbvios, feita durante o passeio em São Paulo) anseia, por meio dos mapas da Blind Wiki, que a comunidade de pessoas com deficiência visual seja não apenas incluída, mas que projete sua voz para o restante da sociedade. E se a gente usa o mapa que ele inventou para fazer turismo também, está tudo bem. Mas a ideia de Abad é a da experiência da inclusão.
Foi então que entendi o convite. Eu havia sido chamada a fazer uma viagem para fora da minha bolha — usando a expressão que remete ao nosso confortável mundo próprio, onde convivemos cercados das pessoas que pensam como nós e só daquilo que conhecemos bem. O convite para a acessar a Blind Wiki foi um chamado para aprender a me colocar no lugar do outro. Então, como é passear por um lugar sem enxergar?
Pessoas que vendo, não veem
Os estalos vieram aos poucos, enquanto eu me debatia para me acostumar ao aplicativo — sites e apps voltados a pessoas com deficiência visual trazem padrões diferentes daqueles aos quais me acostumei sendo pessoa que vê. Mas eu bem entendi como é que as pessoas que não enxergam igual a mim notam coisas que eu não noto. Ao tatear o mundo, pisar nele, ouvi-lo e respirar, elas trazem percepções que às vezes não registramos mesmo tendo os olhos bem abertos e funcionando.
Bastante provocada pela experiência, saí fazer minhas pesquisas e, na inquietação, encontrei um pouco de resposta também nas páginas da própria Vida Simples. Numa experiência relatada aqui em 2020, a autora Daniela Pires descobriu uma dezena de universos particulares, todos longe daquele que conhecia. Ao viver um dia como carteira — a profissão dela é outra e o motivo da experiência agora não vem ao caso — Daniela experimentou das pessoas atrás da campainha a frieza e o calor humano, o silêncio e a partilha, a invisibilidade e o olhar.
A cada visita, uma barreira emocional ou mental da carteira por um dia era quebrada enquanto sua admiração pelos carteiros crescia. Ao se colocar no lugar desses profissionais que diariamente batem na porta de gente desconhecida, ela aprendeu lições de resistência, paciência e respeito. E achou ali a conexão que faltava fazer para enxergar o mundo através das lentes do outro. Até parafraseou o escritor português José Saramago, sugerindo que somos “cegos que veem, cegos que, vendo, não veem” — além de pessoas com a mesma necessidade de pertencer e de ser amadas.
No fim, o desfecho para minhas inquietações zanzando pela Blind Wiki, apareceu também numa reflexão provocada aqui pela escritora Margot Cardoso. Somos mais sensíveis àquilo que compreendemos, ela diz. Isso se chama empatia. E não é que gostaríamos que os outros também nos olhassem com empatia? É só perceber nas nossas falas do dia a dia: “coloque-se no meu lugar”, “se você estivesse na minha pele”, ou “queria ver se fosse com você”.
Mas por que o olhar empático é importante? Ouvi em algum lugar que ao me colocar no lugar do outro faço do mundo um lugar de todos. Para mim, isso é importante. Se for importante para você também, então o trabalho está feito.
(*para quem quer conhecer a Blind Wiki, o aplicativo pode ser baixado tanto para Android quanto iOS e o site é este aqui)
JULIANA REIS é uma contadora de histórias de viagem que sonha em ter um motorhome desde criança para bater asas sem arrancar as raízes. No Instagram, descreve suas impressões no perfil @viagenstransformadoras. Escreve aqui, no portal Vida Simples, mensalmente.
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