A quietude necessária nos tempos atuais
"Quando ficamos sem tempo para nós, perdemos a conexão com o que somos e o que queremos". A primeira coluna de Margot Cardoso já está no ar.
Ando assombrada com as pessoas. A postura humana supostamente ereta mudou para alguma coisa próxima do ponto de interrogação: Todas tem a cabeça direcionada para baixo, para o visor do celular. Elas estão em toda parte: na fila do banco, no elevador, no ponto de ônibus… E mesmo sentadas, numa curta pausa para o café, as cabeças continuam inclinadas para baixo. E eu — literalmente ponto de exclamação — apesar do assombro, compreendo as razões. A ideia de que cada hora do dia deve ser produtiva ganhou muita força com a tecnologia. O saldo bancário pode ser verificado enquanto se espera o elevador, as redes sociais são atualizadas enquanto se está no metrô; a partir de qualquer lugar pode-se estar “presente” no escritório, no supermercado, no banco. E nada fica de fora: a agenda eletrônica guarda e informa em tempo real o que a cabeça não consegue armazenar. O celular passou a ser uma extensão — uma espécie de terceira mão — não fazemos nada sem ele. E tudo isso vem revestido de um imenso orgulho, afinal fazemos muito mais e mais rápido do que em qualquer outra época da história. Mas por quê apesar de todos os benefícios e ganhos, persiste a sensação de falta de tempo? Por quê ao fim do dia o cansaço e a frustração acusam que o tempo não foi suficiente? A razão mais a vista é que a conexão excessiva com o exterior inibe a ligação com o interior. Quando ficamos sem tempo para nós, perdemos a conexão com o que somos e o que queremos. No nosso interior está a nossa bússola, sem ela estamos à deriva, sem propósito, sem rumo…
Se faz tão mal, por quê não resistimos? Porque além de fascinante, a tecnologia ainda nos protege de questões maiores e mais profundas. Preenche as nossas cabeças com distrações que evitam questionar — fazer escolhas, arriscar, enfrentar — nós próprios e os que estão no nosso entorno. Fazemos conexões com pessoas distantes para olharmos o outro, e não a nós.
As razões do medo do vazio
A maioria das pessoas prefere se ocupar com alguma tarefa, mesmo que desagradável. A possibilidade de um encontro com o tédio, a sensação de tristeza, de falta incomodam e são evitados a qualquer custo. Vem a tona também a culpa pelo desperdício de tempo e a sensação de que a cabeça desocupada consiste em uma espécie de perigo. Parte dessa sensação vem da cultura. A moldura capitalista impõe que toda ocupação deve ter uma utilidade; o “cabeça vazia, oficina do diabo” ensina que quando estamos desocupados, o demônio ocupa-se por nós.
Para os gregos, o ócio era bem visto e considerado a gênese da escola — um lugar onde se aprende e se ensina. Aristóteles dizia que o ócio é quando estamos livres da necessidade de trabalhar e temos a oportunidade de pensar na vida. Para os romanos, ócio é otium que significa “estou bem”. Mas a sua boa reputação ficou por aqui. Na sequência, o pensamento judaico-cristão, condenava abertamente o ócio. Foi num momento de ociosidade — quando não seguiu o seu exército — que o grande rei David cometeu o maior do seus pecados. Veio a varanda contemplar o firmamento e viu uma bela mulher. Tratava-se de Bate-Seba casada com Urias. David fez com que Urias fosse morto na frente de batalha para ficar com ela. E os comentadores da bíblia consideram esse episódio como um duplo pecado. Foi o estado de ociosidade que levou David ao pecado.
Ócio = saúde
Acima disso, a biologia impõe-se: o cérebro humano necessita da quietude dos momentos de ócio. As redes sociais com os seus textos, imagens e vídeos podem ser agradáveis no imediato, mas traz uma sobrecarga cognitiva que prejudica as capacidades de criar, planejar, inovar, lidar com conflitos, tomar decisões, gerir emoções… É um entrave para todas as ações necessárias à vida.
O estoicismo — corrente que enfatiza o lado prático da filosofia — diz que boa parte do que acontece na vida, metade é constituída por situações que primeiro passaram pela mente, situações vividas na alma. E depois — porque elas foram desejadas, projetadas — finalmente acontecem na vida de carne e osso. Portanto, essa vivência interna é fundamental.
Para uma vida produtiva e com altas doses de bem-estar, é preciso muito mais do que horas produtivas, é preciso silêncio. É na quietude que se percebe o que realmente nos motiva, de onde vem a verdadeira alegria. É na vivência das emoções que identificamos quais são as que nos alegram e as que nos entristecem. Como se reconhece a materialização dos seus mais íntimos anseios se você não os conhece? Só se consegue apreciar verdadeiramente a vida quando o que se vive faz ressonância com o eu verdadeiro.
Ciente disso, comece hoje mesmo o seu treino. Experimente fazer uma caminhada sem leitor de música, concentre-se apenas no que acontece ao seu corpo; vá tomar um café sem celular e dedique-se a experienciar os sabores, olhar as pessoas a volta; dirija o seu carro sem rádio e desfrute do prazer do movimento. Vá devagar, comece esses exercícios por períodos curtos e depois vá aumentando gradualmente o tempo de duração. E esteja preparado para encarar a oposição. Quando alguém questionar as suas inúteis caminhadas de 15 minutos, não diga que precisa sintetizar a vitamina D. Diga que faz por gosto, por apreciar o sol na sua pele e ponto. E quando estiver totalmente absorto em seus pensamentos e vier a tristeza, encare-a de frente (faz parte) e respire. Preste atenção ao seu corpo; e quando notar que a areia da praia foi modificada pela sua presença, respire fundo. Você está num momento pleno, conectado com o seu interior; abrindo espaço para o sonho, mas consciente de que o mundo é com você dentro.
*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples
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