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A importância do nosso exemplo na educação dos filhos
Sebastián León Prado
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Tenho orientado a educação do meu filho pela ideia de liberdade. Mas a liberdade facilmente gera libertinagem, algo que repudio. Então, como equilibrar as coisas para não formar um crápula, nem tão-pouco um prisioneiro, vítima das minhas próprias crenças e visão do mundo?

— “Ou comes a sopa ou levas mais outra”,

deixo escapar, apercebendo-me de que acabo de deixar escapar um pensamento. Pensei fundo demais para reter em mim as palavras. Acontece-me, por vezes. Estar num lugar e involuntariamente soltar demasiado a ideia. Ou uma simples reflexão sobre algo em concreto. Quando isso acontece, sinto-me defraudado por mim mesmo, como quem dá sem querer uma vantagem a outros para lhe descobrir alguma fragilidade escondida.

A vida é como um grande Big Brother, onde curiosos espectadores espreitam para dentro de rotinas alheias, buscando o lado mais íntimo, mais oculto ou banal dos observados. Eu sou um espectador, reconheço. Por isso, acontece-me estar constantemente atento, do meu canto, mesmo quando tudo o que desejo é estar atento nas páginas do livro que leio.

Negociar com os filhos

Tenho ainda na boca come a sopa, que o Gabriel escutou, mas não percebeu. Estamos no shopping. Sentados na zona da restauração. Por agora ligeiramente vazio, suficientemente calmo para nos concentramos nos nossos livros. Eu leio. Ele lê. Ontem não queria, mas hoje lê. Não o forcei — não sou capaz —, mas há pouco ele disse-me que iria ler. Aceitei.

Estamos na fila. Só uma pessoa à nossa frente. Pergunto ao Gabriel

— o que queres?

com os olhos postos na vitrine. Sei o que quero. Sempre o mesmo.

— Um abatanado bem cheio, por favor. E tu, Gabriel, o que queres?

Pede uma Bola de Berlim com creme e um Ice Tea, receoso. Olha para mim, sabendo a resposta. Não. Recuso. O Gabriel sabe bem como evito que comamos asneiras. Nada de excesso de açúcar, menos ainda um bolo com tanta gordura. E os refrigerantes são proibidos em casa, não os compro, não os tomo, não lhes dou grandes esperanças. Uma, duas, três vezes ao ano, tudo bem. Mas como sei que ele os consome quase diariamente em casa da mãe, imponho-me tanto quanto posso.

— Vá lá, pai, assim não vou comer nada,

diz ele, como quem se prepara para fazer uma birra. A empregada olha para nós, sorridente, parece-me. Paciente, com certeza. Não há outros clientes para atender. Olha para nós, expectante. Argumentamos um e outro. Ele insiste,

— então e este bolo?,

e eu respondo,

— já sabes como funciona, Gabriel, com o teu dinheiro compras o que quiseres, mas, com o meu, gastas em algo que de alguma forma me agrade também,

e apresso-me a acrescentar

— menos refrigerantes ou sumos que não sejam naturais.

— Está bem. Senhora, quero um galão, pai pode um galão? Um galão e um pão com queijo e azeite, pode ser?

A empregada olha para mim. Agora visivelmente sorridente. E lança-me um piscar de olho que interpreto como “conseguiu, venceu”. Serve-nos de seguida e nós caminhamos para a mesa onde sentaremos a ler, antes de conversarmos.

Vamos dialogar, vamos partilhar?

Talvez o meu filho seja como eu. Um espectador atento. Vi como interrompia pontualmente a leitura. Certamente queria saber o que eu pensava, o que eu via e ouvia. Pois a certa altura virei-me para o lado, fiquei assim sentado, e não voltei mais ao livro. Ele espreitava-me, em silêncio. Voltava à leitura. Levantava os olhos, mirava-me, regressava a “Bom dia, Camaradas“. Ria sozinho. Procurava-me

— ó pai,

e partilhava comigo a cena que o agradara.

— Já li estas páginas, vês?,

disse-me várias vezes, sem que eu percebesse se me provocava, se me desafiava. Mas o meu foco esteve naquela mesa grande parte do tempo. Vinte. Trinta minutos, talvez. A ação do casal. A falta de interação. A criança escondida num choro baixo, os lábios trementes, o corpo encolhido. Vinte, trinta minutos perdidos, e a voz do homem não me sai da cabeça,

— “ou comes a sopa ou levas mais outra”,

reproduzo-a, baixinho. Ouvindo, o Gabriel olha-me agora nos olhos. Espera uma palavra de mim, a iniciativa. Mas como me mantenho em silêncio, vejo-o movimentando as mãos, fecha o livro, mas não, deixa-o entreaberto, com o dedo indicador no meio. Encerrou a leitura, percebo. Apanhou-me pensando alto. Por isso pergunta

— o que foi, pai?

O exemplo que damos

Posiciono-me na cadeira. Estou de frente para o Gabriel. Deixo o casal nas minhas costas. Aproximo-me bastante do meu filho, tenho o tronco sobre a mesa, os cotovelos sobre ela, o livro pousado no meio. O Gabriel faz os mesmos movimentos, antevendo de mim a chegada de um segredo. Está certo. Muito baixinho, eu digo

— primeiro, a mulher tentou dar a sopa ao menino. Falava com carinho, como a tua mãe faz contigo. Bem que tentou. Não conseguiu. O miúdo fez birras, mais ou menos como tu. Não queria tomar a sopa. Pedia algo parecido com o que havia na bandeja dos pais. Uma Coca-Cola, um sumo de laranja, uma tosta mista e um pastel de nata. Sempre que a mãe tentava lhe enfiar a colher na boca, ele cerrava os lábios, virava a cara, chegou mesmo a cuspir a sopa quando a tinha na boca. Foi então que o pai lhe deu uma valente palmada na perna, encostou a cara na cara dele, disse, nervoso, “ou comes a sopa ou levas mais outra”,

— tu viste isso, pai?,

— sim, pus-me de lado, e eles, distraídos, nem se aperceberam que eu os observava. Vi a mãe largar a colher, o pai pegar nela, pô-la na boca do miúdo, com a sopa, à força. Claro que o miúdo nem piou nem mais uma vez. Engoliu a sopa e o choro. Tremia de medo. Ou de raiva. E isso tudo porquê? Por

— causa da sopa,

conclui o Gabriel. Então acrescento,

— pois é, apanhaste-me a pensar exatamente nisso, se uma sopa justifica aquele ambiente. Não sorriem. Ninguém fala. Estão todos amuados. Para os pais, a criança estragou-lhes o dia. Para o filho, os pais são maus e não o compreendem. E agora repara nisto, Gabriel. Esse filho há de crescer com a ideia da sopa associada ao castigo, à violência. O medo fá-la-á comer a sopa e assim agradar aos seus pais.

Mas, um dia, o medo transformar-se-á em força, em ira, e em adulto, esse indivíduo que estás a ver será violento com os seus próprios filhos, obrigá-los-á a comer a sopa, quando ele mesmo não a tomará, e isso porque este é o exemplo que tem.

Espero que não seja assim. Mas, infelizmente, muitas das nossas ações refletem os exemplos que tivemos na vida. Ao menos tu, meu filho, se ficares traumatizado porque não te deixo comer Bolas de Berlim, deixarás de comer algo que te faz mesmo mal, e

— pai, mas tu não me bates. Como é que eu vou ser violento?

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Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:

Tão-pouco: muito menos, advérbio usado para intensificar uma negação.

Apercebendo-me: dando-me conta, o mesmo que percebendo.

Defraudado: enganado, iludido.

Zona da restauração: zona de alimentação.

Ligeiramente: Em reduzido grau; com baixa intensidade.

Abatanado: café servido em meia xícara de leite, com a mesma quantidade de pó e maior quantidade de água relativamente àquele que é servido em xícara própria.

Bola de Berlim: aqui no Brasil chamamos de “sonho”, vendido geralmente em padarias.

Ice Tea: termo inglês para chá gelado.

Empregada: o mesmo que atendente ou garçonete. Em Portugal, utilizado para funcionário de café, restaurante ou hotel que serve os clientes.

Expectante: aquele que espera, observando.

Sumos: suco natural.

Galão: copo grande.

Miúdo: garoto, criança.

Tosta: Sanduíche torrado ou grelhado e geralmente prensado

Cerrava: fechar, apertar.

Amuados: aborrecidos.

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