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Joguemos com mais humildade
Adrià Crehuet Cano | Unsplash
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Humildade é saber reconhecer os próprios erros, defeitos ou limitações. Significa pequenez. Ter capacidade de atribuir a si sentimentos de inferioridade. O que não é necessariamente mau, quando assumimos que a submissão é também um modo de demonstrar respeito, reverência, modéstia, pelo outro. Só depois vem a pobreza. E não tem mal algum se formos pobres na arrogância, no orgulho, no desrespeito. Sejamos, portanto, humildes. Somos melhores quando aceitamos jogar com os outros.

Ele corre com a bola desenfreadamente. Tem de a passar. Não o faz. Quer fintar os adversários porque é hábil com a bola nos pés e a confiança, sente-se, cresce-lhe no peito. Finta o primeiro. Segue junto à linha. Tem fé na sua capacidade. O cabelo esvoaça, cobre a cara. Finta o segundo. Com com pés rápidos. Há no garoto uma estranha insolência, atrevimento, coragem proveniente da convicção no próprio valor, que se sobrepõe ao chamamento do adulto no centro do campo,

— João!,

É o ego a revelar-se num jogo de equipe, murmuro baixinho. O rapaz tem talento, sim. Mas tem também o Gabriel desmarcado deste lado do campo, sozinho, esquecido dos adversários. Parece invisível, o meu filho. Todos estão concentrados na ação do que se agarra à bola. E brilha, ao revelar uma boa familiaridade com o esférico. Agora encontra dois adversários diante de si. Aproxima-se outro nas suas costas. Um passe. Um simples passe e isola o Gabriel. Mas ele não pensa já. Corre em direção ao muro, levado pelo instinto e pela voz da mulher que grita bem ao meu lado

— vai, João, vai João,

contrariando as indicações do treinador,

— João, passa a bola! Passa a bola ao Gabriel!

Uma mãe protege o seu filho. Sempre?

A mulher ao meu lado sai da sua posição. Deixa de ser espectadora. Afirma-se mãe. Entra furiosamente no campo, correndo na direção do treinador acocorado à frente do jogador que o não obedecera quando gritara para passar a bola. A mulher está junto deles. O garoto, que tinha os olhos colados no chão, como se temesse as palavras ouvidas ou sentisse vergonha ou arrependimento, observa agora a progenitora, vociferando contra o treinador, com um jeito nos lábios que me soa a concordância e, ao mesmo tempo, gozo. A mulher protege-o seu filho,

— por que é que ralha com o meu filho se ele não fez nada de mal? Que é isso? Onde já se viu? Eu pago para o meu filho vir aqui jogar, não para levar sermões de uma pessoa bruta como você! Não tem de dar lições ao meu filho. Deixe-o jogar à vontade. Qual é o seu problema contra ele? Diga lá, qual é

atacando o treinador, que se levantara, lentamente, como estando cansado. Vejo-o inspirar longamente, ganhar uma extraordinária volumetria com o peito inchado de ar, os ombros elevados, as mãos nas ancas. É um homem alto, encorpado, atlético. Um homem de estatura intimidatória que, no entanto, não parece surtir receio, medo ou terror sobre a mãe do jogador.

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Estamos aqui também para educar

— Boa tarde, mãe. O futebol é um jogo de equipe. Os jogadores têm de trabalhar em conjunto para golear o adversário e impedir que eles o façam por sua vez. Para isso, é preciso solidariedade, respeito e, acima de tudo, humildade. O João é um excelente jogador. Mas, estamos aqui também para educar e é meu dever chamar a atenção dele e de todos os outros quando são individualistas e prejudicam a equipe. Escute, não tenho nada contra o João. Ele atraiu os adversários para este lado do campo, o colega desmarcou-se para aquele lado, isolou-se. O que é que o João tinha de fazer?, passar a bola. Assim

— está bem, não o fez, e daí?, por que é que tem de o ralhar à frente de todos? São crianças, estão aqui para se divertirem, não para serem envergonhadas pelo treinador. O meu filho não é humilde, é isso que disse?, é isso que tem contra ele?, acha que os pais dele não lhe dão uma boa educação em casa e, por isso, tem você de lhe explicar o que é ser humilde, passar a porcaria de uma bola aos colegas, a todos os colegas, quer dizer, ele é o único que corre com a porcaria da bola, cansa-se mais do que os outros e, depois, tem de passá-la aos outros que ficam parados à espera, isso é que é ser humilde, trabalhar para os outros…

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Cada um com os seus problemas

— Este treinador é um filho da puta,

diz a mulher, baixinho, ao passar por mim. Eu, que sou professor e me debato todos os dias com o desrespeito dos alunos uns para com os outros e também para com os professores dentro da sala de aula, hesito. Penso responder-lhe. Dizer-lhe: é esse o exemplo que a senhora transmite ao seu filho — que os outros é que estão errados e ele pode tudo; que os outros, os que o chamam a atenção, são os filhos da puta; que amar é mandar os outros calar.

Reflito. O que ganho eu dando agora à mãe um sermão a favor da humildade? Sei bem que as minhas palavras serão inúteis. Ainda mais, ditas em voz alta diante destes pais que assistem ao treino. Então recordo subitamente Tolstói. Aprendi com ele a lição.

Se quero pintar o mundo, melhor é começar pela minha aldeia.

E a minha aldeia é a sala de aula — cada aluno é ainda uma tela em branco para pintar de humildade.

Leia todos os textos da coluna de Didier Ferreira.


DIDIER FERREIRA é escritor, professor de Língua e Literatura Portuguesa, doutorando em Estudos de Literatura na Universidade Nova de Lisboa (Portugal), fundador do movimento Jovens Poetas Vadios e autor de Nada Faz Sentido (Associação Poetas Almadenses) e O Diário Poético de um Empregado de Balcão (Esfera do Caos).

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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