Por que o amor é tão frágil e a raiva tão potente?
Parece que temos mais facilidade em nos conectar com a raiva que com o amor. Mas, em tempos de ódio, o bom mesmo é andar amado
Essa semana a questão da raiva me apareceu por diversas frentes. Por que o amor é tão frágil e a raiva tão potente? Por que é tão mais fácil fechar com a raiva? Por que o convite para a guerra é sempre tão imediato, toca fundo rapidamente, nos mobiliza e “ferve o sangue”, afinal “ninguém tem sangue de barata”, enquanto que os convites para o amor são sempre olhados com desconfiança, com medo, tocam nas nossas fragilidades e nos colocam em estado de alerta, como se fosse mais importante se defender ou se proteger do amor que da raiva?
Vou percebendo esse fenômeno em diversas relações. Nas famílias, nas relações eróticas, nas amizades, na clínica… Com as crianças é diferente no começo. Mas tão logo elas vão sendo demolidas por um processo fundamentado na violência, conhecido como “educação”, essa transformação logo se mostra.
E aí eu fiquei pensando muito numa história minha que eu gostaria de compartilhar.
Conheci histórias muito antigas de minha família. É um hábito de nossa família, desde o século XVIII, termos filho aos quarenta anos. Eis que, em 1848, minha trisavó Carmin estava com minha bisavó Prudenza recém-nascida no colo, enrolada no seu avental de camponesa, fugindo da guerra italiana contra o domínio austríaco. Enquanto corria atravessando o campo de batalha, foi interpelada por um soldado, que pediu para que ela mostrasse o que levava ali escondido. Minha trisavó desenrolou o bebê, o soldado olhou e, como que congelando a cena grotesca da tragédia de todas as guerras, pediu para que ela guardasse a bambina, porque eles se casariam futuramente. Em 1865 eles se casaram, e é daí que eu descendo. E esse é um mote muito presente na minha família: a guerra e o amor se apresentam, e você precisa escolher um desses caminhos para seguir.
Compartilho essa história porque ela não é minha. Ela é daquelas histórias que são da gente mais ao mesmo tempo de todo mundo. Acho que, de certa forma, estamos sempre atravessando campos de batalha: seja lutando, seja fugindo, seja protegendo alguém ou, ainda, sendo protegido. Essas travessias vão dando o tom da nossa trajetória. E, se não tomarmos cuidado, nos envolvemos tanto, tão profundamente nas guerras, que perdemos o pouco precioso tempo que temos nessa curta vida para amar. “Não se demore onde você não possa amar”, disse a artista. Esse mote me acompanha. Minha maior guerra é contra a guerra, contra esse meu impulso, que não é meu, que é cultural, que é transgeracional, de me conectar com a dor ao invés de apostar no amor.
Amar o por do sol, a chuva, amar a fuga e os recomeços, amar os fins e a tristeza, porque da morte também surge nascimento. Amar a dor das separações acreditando que o reencontro irá acontecer se estivermos firmes no nosso propósito de amor.
Nossa sociedade preconiza o tempo todo essa relação imediata com a raiva. Mais um projeto de dominação do patriarcado. Nessa operação, ficamos submetidos à busca de saídas para nossos sofrimentos que são, necessariamente, externas e temporárias. Ou seja, esse projeto nos conecta com o consumo, com a avidez, com a ansiedade. Nos faz construir argumentos que embasam certezas e nos afastam das dúvidas primordiais que fundamentam nosso coração e a nossa abertura para a vida.
É muito importante que possamos sentir e acolher nossas raivas. Nomeá-las e vivê-las de fato. Mas não é essa a saída. Viver a raiva não é “grudar” nela. Se o convite do amor nos deixa apreensivos, o convite da raiva imediatamente apresenta uma cola, um grude, um chamado para uma super conexão que explica todas as nossas dores e justifica nossas covardias.
“É mais fácil ser triste que alegre”, já disse o compositor, assim como é mais fácil ser covarde e se esconder em desculpas que assumir um caminho focado no amor. Esse é delicado, frágil, facilmente ameaçado, nos expõe e nos intranquiliza, nos conecta com nossa vida e com nossa própria morte. “Em tempos de ódio, é preciso andar amado.”
Myrna Coelho é psicóloga clínica, professora e doutora pela USP. Decidiu recomeçar a vida do outro lado do oceano, onde segue atendendo seus pacientes e dando supervisão online. Por aqui, semanalmente, reflete sobre como podemos viver com mais liberdade de ser. Mande sua mensagem para: [email protected].
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