A moda gourmet
Pratinhos em roupagem esnobe. Será que precisamos mesmo de tanta afetação? Entenda o que transforma a comidinha singela em alimento de grife
O docinho ganhou roupagem esnobe, assim como os salgados de festa e os sanduíches. Será que precisamos mesmo de tanta afetação? Entenda o que transforma a comidinha singela em alimento de grife
A gastronomia, tal como outras áreas como a moda e a literatura, passa por transformações, sofre tendências, segue movimentos. Na década de 1960, a nouvelle cuisine veio pregar uma maior valorização dos ingredientes e de sua naturalidade.
Na virada do século, os espanhóis trouxeram a cozinha tecnológica (ou tecnoemocional): todo um embasamento acadêmico-científico para criar receitas que desafiam a física dos alimentos. Comida do futuro, só que servida hoje. Ou ontem, já que a tendência já perdeu força.
Agora, parece que uma certa relação (resgate, dizem) com a natureza vem ditar o comportamento à mesa. É, os modismos também chegam às panelas. Mas o que determina uma tendência gastronômica? “Elas surgem em restaurantes inovadores, que têm à frente chefs influentes e com visão de futuro, geralmente nas grandes capitais.
Modismos
Ao longo do tempo, tornam-se mais e mais mainstream, virando um clichê nos menus, aparecendo nos restaurantes de alta gastronomia das cidades menores e, eventualmente, encontram seu caminho em bistrôs de bairro, nas cadeias de restaurantes em todo o mundo, viram populares”, explica Neil Irwin, analista econômico do jornal The New York Times, que resolveu fazer um estudo sobre o assunto.
Irwin pesquisou, nos arquivos do Times, quantas vezes algumas referências a alimentos específicos apareciam em textos da publicação, de 1980 a 2013, para tentar checar o auge de seus modismos. Quinoa, por exemplo, teve cerca de 10 citações em 2000, mas apareceu mais de 120 vezes em 2013.
A barriga de porco foi popular nas décadas de 1980 (com mais de 70 ocorrências em 1981) e amornou até retomar com tudo a partir de 2008, com o auge de 93 citações em 2013. Já o tartare de atum se manteve consistente desde que suas primeiras alusões surgiram, no início dos anos 2000: uma média de 15 citações anuais, até o ano passado. Um clássico, acredita Irwin.
O petit gateau
Sucesso absoluto no Brasil, a ponto de ser encontrado congelado nas gôndolas dos supermercados, o petit gateau teve uma trajetória bem semelhante ao caminho dos modismos gastronômicos reportados pelo analista.
O chef francês Michel Bras criou, em 1981, o coulant, uma sobremesa de chocolate que por fora parecia um bolo mas, ao ser cortado, tinha um recheio extremamente cremoso, que escorria pelo prato. A receita levou bastante tempo para ser desenvolvida e se tornou um dos pratos emblemáticos criados por Bras, considerado até hoje um dos maiores cozinheiros do mundo.
E inspirou o pequeno bolinho mal-assado que virou presença massiva em nove de cada 10 cardápios no país. “Trazida ao Brasil, a sobremesa entrou no alto circuito gastronômico e ganhou enorme popularidade”, afirma Thiago Marcello Bettin, professor do Centro Universitário Senac de Campos do Jordão (SP).
Tempos depois, foi parar nas churrascarias, nos restaurantes self service, nas confeitarias. Ganhou novos sabores (goiabada com queijo, por exemplo), enfiaram-lhe um palito de sorvete no meio, virou versão industrializada e se tornou uma grande febre – daquela que já não se cura.
Tendências no prato
Mas se o petit gateau levou quase três décadas para fazer o circuito descrito por Irwin (da altíssima gastronomia às padarias de bairro), hoje as tendências chegam bem mais rápido. “Acho que é um reflexo da vida contemporânea. É muita informação ao mesmo tempo, conteúdos sempre editados e rápidos.
Isso tudo tem muito impacto na gastronomia, todos estão sempre à procura das novidades, viraram escravos das tendências”, defende o chef Raphael Despirite, do restaurante Marcel e de projetos como o Fechado para Jantar, que realiza refeições itinerantes em locais inusitados.
“Essas modinhas e novidades têm sempre um efeito bombástico e passageiro: você vai ouvir sobre isso exaustivamente por semanas e depois todo mundo logo se cansa”. E isso vale, segundo ele, desde a chamada alta gastronomia, ou “a patota que faz cozinha autoral e que está sempre disposta a criar notícias com um ingrediente mais inusitado (a orelha do porco selvagem orgânico)” até os negócios mais comerciais: “os caras dos cupcakes, brigadeiros, frozen iogurtes, paletas, coxinhas, hot dogs, os foodtrucks e as coisas gourmets da vida”.
Isso dificulta o surgimento de novos clássicos, que demandam tempo para serem criados, depurados, dissipados, aceitos e também popularizados. Com alguma sorte (e com quem ainda se disponha a cozinhá-los), apenas os clássicos sobreviverão.
Procura por menus diferenciados
Essa busca por “tendências no prato” também é um reflexo do momento pelo qual passa a gastronomia por aqui. O poder aquisitivo aumentou a possibilidade das pessoas comerem fora – um crescimento de mais de 12% em 2013, segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) –, programas culinários pululam nas grades da televisão, livros de receitas lotam as livrarias e, nas redes sociais, como o Instagram, proliferaram o hábito de compartilhar pratos.
Há mais dinheiro, existe um maior interesse por comida diferenciada, novos negócios na área surgem todos os dias, mas ainda falta informação, uma base cultural sobre a própria alimentação. E o resultado disso é que muita gente se tornou refém da gourmetização turbinada pelo consumismo.
“A referência de alta gastronomia ainda é muito nova por aqui. É natural que apareça gente se aproveitando da falta de parâmetro do comensal médio, com rótulos cretinos, apenas para ganhar dinheiro. Mas a absurda velocidade de informação atual fará com que essa onda passe logo ”, acredita Júlio Bernardo, o Jotabê, crítico gastronômico (assina o blog Boteco do Jotabê) e ferrenho defensor da comida boa e barata, sem afetações. “Sair pra comer deixa de fazer parte do cotidiano para se tornar um programa metido a besta”, diz.
É tudo gourmet
O “gourmet”, que antes era uma forma de convencer clientes incautos a pagar algumas cifras a mais por uma simples coxinha ou um brigadeiro, já tem virado motivo de deboche nas redes sociais. “As pessoas perderam a mão e a coisa começou a ficar caricata”, afirma Despirite.
A questão está no esforço para dar uma nova cara a coisas que já existem, numa tentativa incauta de reinvenção da roda: pérolas de queijo para traduzir as tradicionais bolinhas de queijo, paleta no lugar de picolé, food truck ao invés de carrinho de comida.
Em vez de criar versões gourmet para tudo, essa criatividade poderia ser usada para a criação de novos pratos ou receitas, segundo o professor Thiago Marcello Bettin. “Todo mundo sairia ganhando, principalmente a gastronomia e seus comensais”, afirma ele.
“Talvez esse volume enorme de curtas informações esteja formando profissionais com menos profundidade técnica e menos base, fazendo das novas receitas sempre pop ups passageiros. Mas, felizmente, esse fenômeno pode ser bastante temporário também. E, então, as coisas voltem a ser mais simples”, afirma o chef Raphael Despirite.
Resgate da simplicidade
A banqueteira e escritora de gastronomia Nina Horta não tem dúvida de que se trata de algo temporário. “Comida tem tanta moda como bolsa vermelha grande, saia de couro, gravata fina, sapato com salto plataforma. Há um tempo estão em moda os rabanetes, por exemplo. Voltaram depois de passar uns trinta anos no esquecimento”, afirma. “Lembram-se do ano inteiro em que comemos tomate seco com rúcula? A surpresa do salmão, o carpaccio com seu molho, o vinagre balsâmico, os sais coloridos ou o arroz negro”, diz Nina.
Tudo tem seu tempo, e esse parece ser o momento das comidinhas gourmet. Ninguém vai aguentar isso por muito tempo, como as redes sociais já fazem anunciar. “E estou sentindo os arrepios, só que ainda não consegui botar o dedo na ferida.
Tem a ver com o orgânico, a paisagem dentro da nossa cuia, aquela coisa de olhar pela janela da cozinha, ir lá fora e catar o pinheiro, o musgo e as pedrinhas do caminho, temperar e comer”, acredita a banqueteira. Uma simplicidade parece começar a tomar forma nos pratos, uma naturalidade tem despertado uma nova (velha?) relação com a cozinha. Sem ostentação, sem glamourização e, esperamos, sem nada gourmet. “Vem coisa nova por aí”, garante Nina. Só precisa saber de que panela está saindo…
Rafael Tonon é jornalista e adora tendências de gastronomia.
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