Será que vale a pena levar a ferro e fogo as nossas certezas?
Certeza ou teimosia? A obsessão por uma ideia, a convicção em direção a um determinado objetivo ou crença, faz com que menosprezemos outras ideias, outros caminhos e novas perspectivas.
Certeza ou teimosia? A obsessão por uma ideia, a convicção em direção a um determinado objetivo ou crença, faz com que menosprezemos outras ideias, outros caminhos e novas perspectivas.
Já vivi bons anos. Não me lembro de ter visto tantas pessoas entrincheiradas na defesa de suas ideias, de suas certezas. Nem bem ouvem os pontos contrários e já se armam de argumentos, como se cada um deles fosse irrefutável. Preferem continuar obstinadamente com seus próprios pensamentos, com suas próprias convicções. “Homens convictos são prisioneiros” já nos alerta Nietzsche em Assim falava Zaratustra.
Parece ser um contrassenso. E é. Afinal, como Houaiss bem define o termo, “convicção é crença ou opinião firme a respeito de algo”. E nós precisamos de certezas em nossa vida, de um caminho seguro que nos ajude a enfrentar esta infinidade de escolhas, de possibilidades e de desafios que temos de superar a cada novo dia. As certezas são, por isso, essenciais para nossa existência.
O problema, entretanto, surge quando a pessoa transforma suas convicções em verdades absolutas, e atém-se a essas certezas inquestionáveis de forma obstinada. Nesse processo, a reatância, uma quase doentia resistência emocional, a obriga a só aceitar suas próprias conclusões e a se sentir livre para chegar, sem influências externas, apenas às decisões que deseja.
Essa obsessão por uma ideia, a convicção em direção a um determinado objetivo ou crença, faz com que menosprezemos outras ideias, outros caminhos e novas perspectivas.
Um exemplo genial
Shakespeare, em sua extraordinária comédia O Mercador de Veneza, mostra as armadilhas daquele que se aprisiona às próprias palavras. É um exemplo perfeito dos riscos de quem, com estreiteza de pensamento, coloca em si uma venda, apegando-se ao um único sentido, ainda que tenha diante dos olhos um leque de possibilidades.
Nessa obra, o escritor conta que Bassânio, que desejava conquistar Pórcia, uma afortunada herdeira e que tinha aos seus pés muitos pretendentes, pede a seu amigo Antônio, um mercador de Veneza, três mil ducados emprestados. Com essa quantia ele teria possibilidade de concretizar seu sonho amoroso.
O momento não era oportuno, pois Antônio não dispunha daquela quantia. Como em breve seus barcos atracariam no porto de Veneza, tomou a iniciativa de ir com Bassânio pedir ao judeu Shylock o dinheiro emprestado. O judeu costumava conceder empréstimos a juros. Essa era a razão pela qual ele e Antônio viviam em contendas, já que este era cristão, muito generoso e avesso a essa prática. Shylock viu aí uma ótima oportunidade para se vingar daquele que tanto o criticava.
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Sem que Antônio percebesse suas verdadeiras intenções, concordou em emprestar a quantia solicitada sem a cobrança de juros. Apenas estabeleceu a condição de que, se o pagamento não fosse efetuado no prazo combinado, poderia exigir do devedor uma libra de carne, que seria retirada de qualquer parte do corpo, de acordo com sua conveniência.
Conforme o judeu previra, os barcos de Antônio não chegaram a Veneza em tempo hábil para que o pagamento fosse efetuado. O credor recorre, então, à justiça para que o contrato fosse cumprido.
Pórcia soube do que estava acontecendo com Antônio. E como ele havia entrado nessa armadilha para ajudar seu amor com o pedido de empréstimo, resolveu socorrê-lo. Ela pertencia à família de Belário, um conceituado advogado. Aproveitando-se dessa circunstância, disfarçada, ela se apresenta ao tribunal como o jovem advogado Baltasar. Munida de uma carta de recomendação de seu parente ao doge, que presidiria a sessão, ela atuaria na defesa.
Antes, tentou todos os meios para dissuadir o judeu de seu intento. Chegou até a oferecer três vezes mais a quantia devida para que a cláusula do contrato não fosse considerada. O judeu não aceitou, pois, sua intenção era a de fazer com que Antônio sofresse. Pórcia, vivendo o papel de advogado, exigiu que o contrato fosse levado a termo.
O diálogo dela com Shylock é uma das páginas mais interessantes da comédia shakespeariana:
Pórcia – Uma libra de carne desse mercador te pertence. O tribunal te adjudica essa libra e a lei ordena que ela te seja dada.
Shylock – Oh! Nobre juiz! Oh! Excelente jovem!
Pórcia – E podes cortar-lhe essa carne do peito. O tribunal o autoriza e a lei o permite.
Shylock – Sapientíssimo juiz! Isto é que é uma sentença! Vamos, preparai-vos!
Pórcia – Espera um momento. Ainda não é tudo. Esta caução não te concede uma só gota de sangue. Os termos exatos são: “Uma libra de carne”. Toma, pois, o que te concede o documento; pega tua libra de carne. Mas, se ao cortá-la, por acaso, derramares uma só gota de sangue cristão, tuas terras, teus bens, segundo as leis de Veneza, serão confiscados em benefício do Estado.
Ao tomar consciência de que outra interpretação poderia ser dada àquele contrato, para a qual não havia atentado, Shylock resolveu aceitar a quantia proposta como acordo, mas não havia mais tempo. Ele acabou por perder o dinheiro que emprestara e teve seus bens confiscados por atentar contra a vida de um cristão.
Liberdade para escolher nossas prisões
Por esse exemplo, podemos concluir que aqueles de nós que vivemos tão convictos de nossas ideias, e que, às vezes, até nos tornamos prisioneiros de nossas próprias palavras (como se somente elas fossem a expressão da verdade), devemos ter em mente que esse comportamento pode ser nada mais que insensatez.
Como não precisa ser necessariamente prisão perpétua, este texto, em última análise, pretende entrar com um habeas corpus no uso das próprias ideias para que possamos no mínimo ter a liberdade de sair de uma cela e entrar em outra. Ou seja, nada de ficar prisioneiro sempre das mesmas palavras. Podemos… nos aprisionar a outras.
Leia todos os textos da coluna de Reinaldo Polito em Vida Simples.
REINALDO POLITO (@polito) é mestre em Ciências da Comunicação, palestrante, professor nos cursos de pós-graduação em Marketing Político e Gestão Corporativa na ECA-USP e autor de 34 livros que já venderam 1,5 milhão de exemplares em 39 países. Sua obra mais recente é “Os Segredos da Boa Comunicação no Mundo Corporativo”.
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