Para um Facebook que desperte o melhor em nós
Autonomia individual e democracias estão em perigo, nós estamos em perigo, porque nos entregamos nas mãos de empresas — como o Facebook— que nos veem apenas como fonte de lucro.
Autonomia individual e democracias estão em perigo, nós estamos em perigo, porque nos entregamos nas mãos de empresas — como o Facebook— que nos veem apenas como fonte de lucro.
Precisamos falar sobre o Facebook. E essa conversa não é relativa ao apagão da última segunda-feira (4/10). É sobre o depoimento de Frances Haugen ao Congresso dos EUA no dia seguinte. A ex-funcionária do Facebook denunciou a empresa por agir contra a democracia e o interesse das pessoas, para manter um modelo de negócio muito lucrativo para seus acionistas. Frances trabalhou na equipe responsável por investigar desinformação, contraespionagem e ataques à democracia dentro da maior rede social do mundo.
Dois anos depois de contratada, foi demitida e, sua área foi extinta. Mas antes de sair, ela coletou diversos documentos e pesquisas internas que comprovam o total conhecimento da empresa sobre o mal que faz e a sua inércia em lidar com essas questões.
“Conectar o mundo”
Os documentos foram revelados pela primeira vez numa série de reportagens do Wall Street Journal, ainda de forma confidencial. Mais tarde, Haugen assumiu a autoria das denúncias numa entrevista no programa 60 Minutes. Nesses depoimentos ficou claro que sabemos pouco ou quase nada sobre a empresa que detém um enorme poder sobre nossas vidas. Por fim, um poder que em palavras bonitas da organização tem o propósito de “conectar o mundo”.
Entretanto, agora sabemos, tem como única prioridade gerar lucro para seus acionistas. Um caminho no qual, nas bifurcações – entre mais dinheiro ou seres humanos – o lado escolhido é sempre o do acúmulo de capital.
Um modelo que desperta o pior em nós
Dessa forma, questões prejudiciais para indivíduos e coletividades foram sendo alimentadas: a desinformação, o discurso de ódio, o medo, a ansiedade. Assim, coisas que já sabíamos, graças a estudos vindos de pesquisas sérias e independentes. No entanto, o que não sabíamos era que não se tratava de algo ocasional ou acidental. Mas sim, o resultado inevitável de um projeto da empresa.
É urgente que esse véu continue sendo levantado, para compreendermos que nossa autonomia pessoal e a democracia correm perigo. Somos mais de 3 bilhões de pessoas no mundo todo sendo influenciadas por algoritmos que não trabalham para o nosso bem-estar. Um contigente populacional e um nível de poder de manipulação nunca alcançados e muito desejados pelos maiores ditadores do mundo.
Monopólio e manipulação
Dessa forma, estamos reféns de um monopólio que usa nossos dados para prever nossas ações e nos manipular mais facilmente. Tudo para sequestrar nossa atenção e vendê-la para anunciantes. Só no ano passado, a empresa lucrou mais de 29 bilhões de dólares. E veja bem, o problema não é fazer dinheiro com espaços comerciais. A grande questão está em como a empresa ganha muito mais dinheiro quando nos manipula para reter nossa atenção por mais tempo.
Dessa busca incessante, a gigante do Vale do Silício descobriu coisas como: notícias negativas nos prendem por mais tempo, mensagens de ódio nos prendem por mais tempo e uma timeline que nos desperte medo nos prende por mais tempo. Notificações, likes, número de seguidores, novos formatos e uma série de outros recursos que podem bem ser chamados de artimanhas, nos deixam viciados. Um dinheiro conquistado nos fazendo mal e reforçando o que há de pior em nós.
Por uma tecnologia mais humana
Roger McNamee — um ex- investidor e ex-conselheiro de Mark Zuckerberg que hoje ocupa a posição de crítico — clama por uma tecnologia orientada ao humano. Ao invés de uma lógica que alimenta o vício. E é ele que também avisa: o Facebook não vai consertar si mesmo. Sem regulação e com o tamanho que essas empresas chegaram, elas se tornaram um novo poder, maior que o de governos de estados-nação.
Essas empresas monopolizaram nossa comunicação, tomaram de assalto nossa atenção e são capazes de nos manipular individual e coletivamente. Precisamos que legisladores e sociedade civil se mobilizem e discutam leis que tragam mais segurança, privacidade e competição para o mundo digital.
Proteger a nossa privacidade
O ex-conselheiro de Mark lembra-nos que, no passado, quando medicamentos e alimentos não eram regulados, eram perigosos. Por isso, foram criadas agências como a FDA nos Estados Unidos e a Anvisa no Brasil, para garantir a segurança do que consumimos nesses setores. Será que não está na hora de termos uma agência reguladora que estabeleça padrões e que fiscalize o mundo digital para que ele seja mais seguro e benéfico para seres humanos?
Precisamos também resgatar e proteger nossa privacidade, impedindo que as companhias usem nossos dados de forma indiscriminada sem nosso conhecimento e consentimento. É preciso criar mecanismos para recuperar a competição, diminuindo a dependência de uma única empresa e ampliando novamente a internet. Vozes como a de Margrethe Vestager, Comissária Europeia para a Concorrência, vem nos alertando para isso há alguns anos.
Por uma internet mais saudável
Como disse Frances Haugen em seu depoimento, nós podemos ter redes sociais que tragam à luz o melhor da humanidade. Nós merecemos isso.
A web, invenção de Tim Berners-Lee, ampliou o mundo, encurtou distâncias e nos possibilitou um desenvolvimento humano jamais antes visto. No entanto, quando encolhemos a internet e a entregamos nas mãos de uma única empresa que só toma decisões que enchem seus bolsos, estamos perdendo mais do que conquistamos.
TIAGO BELOTTE é fundador e curador de conhecimento no CoolHow – laboratório de educação corporativa que auxilia pessoas e negócios a se conectarem com as novas habilidades da Nova Economia. É também professor de pesquisa e análise de tendências na PUC Minas e no Uni-BH. Seu Instagram é @tiago_belotte. Escreve nesta coluna semanalmente, aos sábados.
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