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O dia em que me coloquei na posição de vítima
Crédito: Sage Friedman | Unsplash
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A crença de que se é uma vítima é autolimitante. No comando, a posição de vítima define os contornos do que se pode ou não se  pode fazer.

Foi em um dia da última semana de agosto, há mais ou menos 14 anos. Eu estava sentada na escada de casa e vi meu ex-marido levando as últimas malas que ainda estavam lá, depois de uma tentativa frustrada de convencê-lo a reconsiderar. Me vi com um bebê de poucos dias, uma filha de quatro anos, sem meu melhor amigo e marido, sem trabalho e prestes a começar o doutorado. Naquela escada, realizei que todos os meus planos e acordos tinham virado pó e me senti extremamente só.

Naquele  instante, deixei a vítima se instalar em mim, sem que percebesse.

Em poucos dias, precisando decidir um monte de coisas, comecei a empurrar a vida como eu podia. Repetia dia e noite: fica firme, firme, se sustenta. Me mudei, vi a escola nova da minha filha, organizei a rotina da casa e saí a procura de um trabalho. Encontrei. E depois de alguns meses, estava com mais dois. Trabalhando em três lugares, dava aulas de manhã e à noite e usava as madrugadas para fazer os trabalhos do doutorado. Infelizmente, não me lembro bem, em que tempo eu abraçava e aconchegava as minhas crianças.

Cabeça no travesseiro

Por mais que eu fosse aguerrida e uma parte de mim dissesse “Isso mesmo! Acabou, chega! Vai à luta!”, quando era tarde da noite, o dia já tinha acabado e eu não precisava mais lutar, era o momento que eu colocava a cabeça no travesseiro e a raiva que eu sentia por estar só se transformava em tristeza. Era, então, o momento propício para a vítima voltar.

Virando de um lado para o outro na cama, minha mente não se cansava de tentar achar uma explicação: O que será que aconteceu? Ele não podia ter esperado dois, três meses para ir embora? Não tínhamos planejado de nos mudar para uma casa maior juntos? Sabendo que ele já não estava mais tanto ali, porque deixou eu sair do emprego que me remunerava tão bem? Não havíamos acordado que eu deixaria a empresa para fazer o doutorado e ficar mais tempo com os filhos?

vítima

Crédito: Zohre Nemati | Unsplash

Entra a meditação

Além do cansaço físico e emocional que sentia, estava exausta mentalmente. Precisava descansar e foi nesse momento que comecei a meditar.

Os dias foram passando e o fato de eu ter me colocado na posição de vítima, acabou por me proporcionar um conforto temporário. As pessoas chegavam até mim, se compadeciam da minha situação e diziam: Nossa, mas ele te deixou com o seu filho com menos de um mês?! Oh, tadinha! Mas, ele não foi seu primeiro namorado? Oh…. coitada. Me davam carinho, atenção. E um lado de mim, gostava. Eu ali me sentia acolhida, achava que podia descansar e me permitia desabafar.

Muitas vezes usei a narrativa da mulher “abandonada”, sem ter consciência desse uso, para que pudesse ser ouvida. Ouvida pela diretora da escola que me deu um desconto na mensalidade da minha filha e do meu primeiro empregador, logo que voltei ao mercado de trabalho. A história da minha separação em alguns aspectos, tinha facilitado algumas coisas para mim. Pelo menos, eu achava isso.

O outro lado

Nada do que eu dizia era mentira. Sem trabalho, sem dinheiro, sem tempo, sem conseguir amamentar. Mas de fato, eu também tinha escolhido esse discurso para assumir e compartilhar.

Alguns anos se passaram e as coisas começaram a acalmar. Sempre adorei trabalhar e quando estava em sala de aula me sentia vibrante e feliz. Ali, naquele lugar, me via como um pássaro de asas grandes, que podia ir para qualquer lugar. Entretanto, quando me sentia cansada e frustrada por algum motivo, um passarinho muito frágil e assustado tomava o lugar dessa livre ave.

A ideia desse passarinho frágil também me foi útil por algum tempo, afinal, um serzinho assustado não é forte o suficiente para voar muito alto ou distante, não é? Ok, eu estou voando, mas estou voando até aqui. Afinal, eu não posso voar muito. Tenho dois filhos, tenho que sustentar a casa, tenho que fazer isso, aquilo etc… Tinha desenhado um monte de limitações justificáveis que me davam um certo conforto para não me atrever a ir muito longe.

posição de vítima

Crédito: Daniel Mingook | Unsplash

Um dia forte e outro fraco

Passei boa parte do tempo, alternando a visão do pássaro de asas grandes e do passarinho acuado e isso refletia em minhas ações que eram muitas vezes intermitentes, sem o foco e sem a consistência que poderia. O fato de uma parte de mim, sentir-se como vítima, me fazia recuar. E assim, eu me autolimitava. Eu mesma havia definido os contornos do que eu podia ou não podia fazer, em função desse meu status, situação, dessa minha história.

Hoje, eu percebo que me senti esse passarinho frágil por mais tempo do que deveria. E que todas os afagos que ele recebia, eu poderia ter encontrado de outras formas. Mas, até então, era o melhor que eu podia fazer. Tudo bem.

Vida livre

Já tem um tempo que essa sensação não faz mais morada aqui. Mesmo assim, ainda preciso vigiar. De vez em quando, a ideia de limitação ainda me ocorre. Entretanto, hoje sei que posso fazer tudo, tudo que eu quiser fazer. Posso me mudar para o Camboja com meus filhos, posso decidir comprar uma casa de campo, trocar de cidade, de trabalho, de cabelo, fazer qualquer coisa que eu queira e que seja verdadeiro em mim.

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Crédito: Milan Popovic | Unsplash

Tenho convicção de que eu não sou e nunca fui vítima de nada e nem de ninguém. Aprendi a sentir diferente e hoje sei, da cabeça a ponta dos pés, que sou livre.

Mas, durante muito tempo foi difícil reconhecê-la, já que minha personalidade ativa e fazedora encobria na maior parte do tempo suas lamúrias. Entretanto, em um momento de mais atenção e consciência, pude percebê-la mais claramente tentando se disfarçar entre uma justificativa e outra.

Vítima escondida

Talvez, você também sinta, que existe um sentimento semelhante em você. Uma sensação de que algo ou alguém te colocou em uma situação, em que você se vê com menos recursos, possibilidades ou chances do que poderia ter. Talvez, as coisas não estejam tão claras, mas se você desconfia que pode ter alguma vítima escondida por aí, ela certamente está.

Se sentir preparada para recolher os aprendizados que teve com ela e partir para um estado de mais liberdade e poder pessoal, é possível. Muita gente já começou e está trilhando esse caminho. Vem também se juntar!


Ana Paula Borges é instrutora de meditação, autora de Flow Mind – Mente Feliz e Criativa no Agora (Editora Saraiva) e acredita que seu casamento deu certo. Afinal, foram quase 18 anos juntos. Mesmo assim, demorou um bom tempo para se livrar da posição de vítima e assumir que o término foi a melhor coisa que aconteceu em sua vida.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples

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