Se a depressão te visitar
Entenda porque é importante acolher a depressão com mais compaixão e menos julgamento. E como é possível reencontrar sentido no viver.
Entenda porque é importante acolher a depressão com mais compaixão e menos julgamento. E como é possível reencontrar sentido no viver.
A cama de casal, king size, no meio da sala. Essa é uma das imagens que me marcaram no ano de 2020. Registrei no celular e mandei para ele pelo WhatsApp: “a cama vai embora hoje”. A última lembrança física de um casamento de quase 13 anos estava sendo colocada em um caminhão e destinada para a doação. Eu acreditei que reformar o quarto e a sala colocaria um ponto final na minha tristeza.
Jogaria para fora, feito pó escondido embaixo do tapete, todo o sentimento represado que se acumulara nos últimos anos. Mas não foi isso o que aconteceu. A cama recém-comprada traria a esperança de um recomeço, a pintura, a nova configuração dos móveis.
No entanto, dentro de mim, abismo. Por mais que me esforçasse para sair daquele lugar escuro e solitário, não conseguia. Pior, não havia ninguém que pudesse jogar uma corda ou escada para que eu saísse. O empurrão, que serviu como alavanca, foi a frase seguida de um abraço da filha de 12 anos: “Mãe, não aguento mais te ver tão triste”.
Crédito: Alex Iby | Unsplash
Pedir Ajuda
O primeiro passo foi voltar para a terapia. Sessão após sessão, ainda me sentia remando contra a correnteza. Choro compulsivo. “Preciso que procure um psiquiatra para tirar o nariz de dentro d’água”, me disse a terapeuta num dia de afogamento emocional. A contragosto, fui atrás do psiquiatra. A primeira consulta foi marcada para 11 de agosto, meu aniversário de 48 anos. Acho que ele nunca soube. Conversamos por mais de uma hora. Diagnóstico: depressão. “O remédio irá te ajudar”, disse. “Mas me fará parar de sentir. Não quero”, rebati.
Ele então me explicou que o remédio não iria aplacar a tristeza, apenas ajudaria a olhar para meus sentimentos com mais clareza. Aceitar o diagnóstico da depressão é mais complexo do que muita gente supõe. A doença traz consigo tristeza e ausência de sentido de vida. E, para mim, veio também com vergonha e sentimento de fracasso. Um misto de sensações que só nos isola, escondendo a depressão igual segredo de família.
Escrever esta reportagem é, por si só, uma forma de dizer que precisamos falar sobre isso e assim ajudar muita gente que sabe como é estar nesse lugar.
Não é frescura
A primeira conversa que tive para entender melhor tudo isso foi com a psicóloga Yara Nico, alguém que estuda profundamente a depressão. Yara tem um livro, lançado em inglês, sobre a depressão como um fenômeno cultural (Depression as a Cultural Phenomenon in Postmodern Society, Editora Springer). De cara, questionei por que tanta gente se sente um fracasso ou tenta esconder a doença no trabalho, das pessoas próximas, por receio de o problema ser encarado como frescura ou algo inventado.
“Nossa cultura considera legítimas doenças que têm uma base exclusivamente física, biológica. Se eu tenho um rim que não está funcionando ou uma diabetes, tudo bem. Então o sofrimento da pessoa é real. Mas, quando falamos do adoecimento mental, ele não se resume exclusivamente a uma dimensão biológica. A causa não é uma disfunção do cérebro e pronto. Ela envolve também questões psicológicas. E quando as pessoas falam que ‘isso é psicológico’ é por que é inventado, não é real. Vira quase um problema moral”, explica Nico.
Crédito: Gabriel EB | Unsplash
Os agravantes
Hoje a depressão é, entre 291 doenças físicas e mentais, a que mais causa incapacitação de pessoas no mundo e no Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde. Mais preocupante ainda: todos os especialistas com quem conversei disseram que a quarta onda da Covid-19 não tem a ver com o vírus em si, mas com os problemas de saúde mental decorrentes desse período em que ficamos longe das pessoas, daquilo que gostamos de fazer, da natureza. “Teremos um efeito cauda longa pelos próximos sete anos”, completa a psicóloga.
A depressão não é apenas um estado de tristeza. É uma sensação estranha de não perceber sentido na vida. E isso é muito assustador. Junto com isso, é comum não se ter energia, motivação. Amo correr, mas, durante meus meses mais difíceis, parei de me exercitar. “Muitas pessoas têm vergonha de se sentir apáticas, pouco produtivas, e acabam não contando aos outros pelo que estão passando, porque isso parece inadequado diante de uma sociedade que valoriza tanto a produtividade. E isso só aumenta a sensação de isolamento”, conta Yara.
É preciso acolhimento
Um braço quebrado vem junto com um gesso; uma cirurgia cardíaca, com uma cicatriz; mas e a depressão? “Uma pessoa com problema mental não recebe a mesma compreensão e acolhimento que alguém com um problema físico.” A conclusão dolorosa é do médico psiquiatra Lucas Benevides. Talvez você se lembre de um fato recente que trouxe essa discussão à tona.
No último torneio de Roland Garros, a tenista japonesa e segunda do mundo, Naomi Osaka, pediu para não participar das entrevistas coletivas. Algo que lhe foi negado. Mesmo assim, ela não apareceu. E isso lhe rendeu não só uma multa altíssima como o repúdio dos outros tenistas.
Não é visível
Em suas redes sociais, Osaka, que desistiu de participar da competição, escreveu em sua defesa: “A verdade é que tive várias lutas com a depressão desde 2018 e tenho dificuldade de lidar com isso. Todos que me conhecem sabem que sou introvertida e os que me veem nos torneios notam que estou sempre usando fones de ouvido porque isso me ajuda a lidar com a minha ansiedade social. (…) Vou dar um tempo das quadras agora, mas, quando for a hora certa. Realmente quero trabalhar com o Circuito para conversar sobre maneiras de melhorar as coisas para os jogadores, a imprensa e os fãs”.
Provavelmente, ninguém teria questionado ou julgado Osaka se ela tivesse sofrido um rompimento de ligamento, feito uma cirurgia ou algo visível aos nossos olhos.A verdade é que convivemos com pessoas como a jogadora de tênis todos os dias e estamos, a maior parte do tempo, no lugar de quem julga, e não de quem acolhe.
Crédito: Tom Sodoge | Unsplash
Uma jornada solitária
Informação, suporte psiquiátrico, remédios, terapia. Tudo isso é essencial para trilhar esse caminho. A medicação, por si só, não tem o efeito de pílula-mágica-da-felicidade, como tanto se apregoou quando foi lançada, na década de 1980, a fluoxetina ou a chamada “pílula da felicidade”. Os antidepressivos não funcionam como um amortecedor de sentimentos. Você segue sentindo tristeza, solidão, alegria. Eles ajudam a desafogar, como uma bóia salva-vidas, mas você ainda precisa nadar em direção à terra firme.
O escritor americano Andrew Solomon é autor de um dos livros mais famosos sobre depressão, O Demônio do Meio-Dia (Companhia das Letras). A obra é um tratado sobre a doença, que o acompanha há mais de duas décadas. Nele, Solomon escreve “o oposto da depressão não é a felicidade, mas a vitalidade, e minha vida, enquanto escrevo isso, é vital, mesmo quando triste. (…)
A cada dia, às vezes combativamente e às vezes contra a razão do momento, eu escolho ficar vivo.
Isso não é uma alegria rara?”
Algo interessante que percebi ao longo das leituras e conversas que tive é o quanto a depressão se apresenta como convite para um mergulho interno. “A depressão é um afastamento do caminho de cada um. A tristeza surge quando me distancio da minha natureza”, acredita Benevides, que acrescenta ainda que o diagnóstico da depressão é feito, em geral, depois de três a quatro anos após o início dos sintomas. O retorno ao caminho da nossa natureza é um sentimento bonito de reencontro com a gente.
A comunicadora Amanda Ramalho, que convive com isso desde a adolescência – sim, crianças e jovens também apresentam a doença –, está nessa trilha de reencontro consigo. Os anos de convivência com o problema a levou a criar um dos melhores podcasts do gênero, o Esquizofrenoias, que tem olhar educativo sobre a depressão. “Por muito anos, não sabia como eu era. E achava cafona ser feliz. Demorou um tempo para entender que ser feliz e ter boas sensações era bom e normal, porque entendi que não sabia o que era isso, já que a depressão me acompanhou por boa parte da vida. Você começa a ver beleza onde antes não via.”
Tristeza não é à toa
A depressão, concluo, é um farol necessário quando algo não vai bem em nós. “É preciso ter coragem para tomar contato com emoções desagradáveis e desafiadoras. Não sentimos tristeza à toa. Ela conta algo”, me diz Yara. “A ideia não é glamourizar a depressão porque é um sofrimento. Mas ela pode ser o ponto de início de uma transformação, de encher a vida de sentido, aprender a lidar e não se definir por isso.”
Além da terapia e da medicação, os exercícios também ajudam muito – voltei a correr e isso tem sido bom. Outra sugestão, que me faz bem e espero que o auxilie, é manter o hábito de escrever um diário. Por meio dessa escrita íntima, consigo olhar para quem sou e o que estou vivendo. Entendi que não foi a separação em si que me levou à depressão, mas os anos em que desviei de mim mesma. E isso é bem doloroso de encarar.
Mas, ao final da conversa com Yara, ela disse algo que me abraçou: “Se olhar no olho dos nossos maiores medos não for sinal de força, eu não sei o que é. Isso é força de transformação”. Sim, Yara. É força. Algo que desejo a mim e a você que me lê. Coincidentemente ou não, esta reportagem chega até você, praticamente, um ano depois do diagnóstico de depressão e da comemoração dos meus 49.
Mais um ano de vida. Viva. Vida.
ANA HOLANDA gestou esta reportagem por meses até ela finalmente nascer no tempo certo
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