Quando raiva é justa e produtiva
Tenho permitido que a raiva venha crua, inteira e me arrebate. Às vezes, ela se transforma em lágrima, às vezes em texto.
Tenho permitido que a raiva venha crua, inteira e me arrebate. Às vezes, ela se transforma em lágrima, às vezes em texto.
É fato que a conjuntura do nosso país ultimamente está colocando muitos de nós – a maioria, eu diria – deitado em posição fetal na espera de um colo. Meu corpo tem arrepios de injustiça ao ver o parquinho infantil daqui perto de casa lacrado com fita zebrada, enquanto o shopping bem ao lado segue aberto, inclusive os restaurantes. Sinto minhas mãos fecharem e o maxilar travar ao pensar que já poderíamos ter vacinado muito mais gente, por conta da grande capilaridade do nosso querido SUS, se não fosse pelo projeto negacionista e necropolítico que se instalou há algum tempo no poder.
Por outro lado, sinto que estou vivendo o mesmo dia repetidamente, com as mesmas tarefas e atribuições. O mesmo medo de me contaminar (de novo) e contaminar alguém. Igualmente, o mesmo medo de atender à uma ligação e ouvir que mais um conhecido se foi. Sinto um luto que está no início, mas não sai desse início. Sobretudo, um luto que não começou a ser realmente vivido, porque ainda estamos sob ameaça. E o luto de verdade só pode começar a ser sentido quando a ameaça se vai.
Da inutilidade
Tenho permitido que a raiva venha crua, inteira e me arrebate. Às vezes, ela se transforma em lágrima, às vezes em texto. Às vezes eu permito sentir o gosto amargo dela na minha boca, para que essa energia se transforme em algo produtivo. Tenho falado mais de política em todos os espaços que eu tenho o privilégio de ocupar e tenho me envolvido em ações pontuais de ajuda a quem precisa. Por fim, entendo que a filantropia é necessária, porque tem gente passando fome, passando necessidade hoje. Mas sem mudança estrutural, nenhuma ajuda pontual dá conta. Seria como enxugar gelo.
Além disso, sinto que chegamos num momento em que não dá mais para esconder que a polarização sempre existiu, só que fora das urnas. O povo pobre, miserável, versus as pessoas que sempre tiveram oportunidades de ganhar seu dinheiro, sem sofrer tantas violências estruturais. Fora os herdeiros, aquele 1% dos brasileiros que lucram com a crise, enquanto o resto vê sua qualidade de vida que já não era tão boa, despencar.
As mulheres, principalmente as negras e periféricas, carregaram e seguem carregando essa pandemia nas costas. Sem escola, sem auxílio digno ou rede de apoio, largadas à própria sorte. Crianças em casa sem escola são presas fáceis para seus abusadores, que em geral são pessoas da família ou conhecidas. A esses foram negados local de acolhimento e denuncia, porque nossos governantes seguem firme com o projeto de sucateamento do ensino público.
Raiva justa
Quando alguém sugere que eu deveria estar mais feliz porque mantive minha renda ou porque ninguém da minha família morreu de Covid, fico perplexa. Questiono que tipo de educação emocional é essa, que ensina que mesmo vivendo nesse caos social que estamos vivendo, deveríamos apenas “abstrair”.
Se existe algum momento para estar com raiva, é agora. Saúde mental é deixar que o corpo e a mente reajam de acordo com o nível de perigo, de ameaça e de injustiça a que estão a ser submetidos. E não tentar se adestrar para negar a realidade. Isso não é saúde mental, isso é usar o privilégio para se isentar de fazer algo com a raiva justa que deveria estar sentindo.
Seja como for, sentir raiva e fazer algo produtivo com ela — inclusive produtivo para todo o grupo de seres humanos e não só para nós mesmos — é um caminho possível. E um caminho de lucidez. Quem está muito bem, pode não estar tão bem assim.
Thais Basile é mãe da Lorena, psicanalista, palestrante e consultora em inteligência emocional e educação parental. Eterna estudante e apaixonada por relações humanas e por tudo que a infância tem a ensinar. Compartilha seu conhecimento para uma educação mais respeitosa no @educacaoparaapaz.
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