Digo o que faço
O que é mais importante, a grandeza do que digo ou a verdade do que faço? Faça o que eu digo, não faça o que eu faço.
O que é mais importante, a grandeza do que digo ou a verdade do que faço?
Faça o que eu digo, não faça o que eu faço. Você certamente já ouviu essa frase, que expressa uma certa ironia sobre a atitude de quem indica, para os outros, comportamentos e escolhas que não toma para si. Não sei quanto a você, mas para mim sempre foi mais fácil enxergar essa atitude nos outros. E julgá-la. Aos meus olhos, havia uma certa má-fé na falta de coerência. Como se fosse consciente a escolha de não fazer o que se recomenda aos outros.
Uma frase de um amigo me abriu os olhos: “Falar sobre uma coisa é diferente de falar a partir dela.” Me fez pensar. E assentir, com um sorrisinho interno, ao lembrar das muitas vezes em que me vi construindo discursos articulados a respeito da simplicidade, defendendo aguerridamente meu ponto de vista sobre o desapego ou criticando mentalmente alguém pelo excesso de julgamentos. O curioso é que, para cada uma das situações citadas acima, sou capaz de lembrar de um aprendizado prático vivido, que me teria dado o que eu chamaria de “sabedoria” a respeito do tema.
Desapego
Aprendi a importância e o prazer da simplicidade no cotidiano dos três anos de sabático em que uma mochila era capaz de guardar tudo o que me importava. Descobri as delícias do desapego após grandes desilusões que me tiraram a paz, até que eu fosse capaz de enxergar que aquilo que eu havia perdido não diminuía meu valor próprio. Consegui distinguir meus julgamentos em anos de prática de Comunicação Não-Violenta, amparado e conduzido por professores amorosos.
No entanto, passado um certo tempo, aquela sabedoria que circulava em minhas veias e transpirava pelos meus poros se reduzia a circuitos elétricos em meu cérebro: palavras e conceitos que lembravam o estado de espírito, mas sem o espírito. Falo a respeito da coisa, não mais a partir da coisa. E qualquer pessoa é capaz de perceber quando há uma centelha viva em mim, uma chama ardendo, ou quando sou apenas um reflexo.
Às vezes, uma lufada de ar fresco — soprada por uma prática consciente ou uma situação inesperada — entra por uma fresta que ficou sem vigilância nas certezas da mente, a centelha arde, o fogo se alastra mais uma vez, estou de novo ocupado por uma chama. Parece que desta vez o aprendizado ancorou, veio para ficar. Entusiasmado, falo a respeito da redescoberta, para apreendê-la de uma vez por todas. Tenho nas palmas das mãos todas as palavras que a descrevem, todos os conceitos, com seus encaixes recém polidos, numa cadeia inquebrantável.
Desconexão
Seguro de sua posse, relaxo. Meu espírito se distrai, a presença se atenua. Ao notar o prédio desabitado, os padrões antigos fazem visitas cada vez mais frequentes e longas. Volto a sentir, pensar e agir de maneira automática e inconsciente, como antes da experiência que me despertou. A vida prática, tanto a interna quanto a externa, já não guarda sinal da sabedoria adquirida, a não ser pelos conceitos, que eu continuo ostentando em discursos e recomendações. Faça o que eu digo.
Eu mesmo só vou perceber o regresso do sonambulismo muito tempo depois, ao reviver, pela milionésima vez, o mesmo sofrimento de sempre. Aflito, evoco mais uma vez os conceitos, como se fossem amuletos que afugentam a dor. Mas então percebo que aquelas ideias tão bem formuladas, lapidadas e polidas já não têm vida. Estão ocas, mais uma vez. Estou de novo perdido de mim. Uma nova busca recomeça.
Comecei este texto movido por uma certa desconfiança de mim mesmo, por perceber uma desconexão entre o que digo e o que pratico. Por estar exatamente nesse ponto descrito: desabitado de mim. E revejo, agora, uma verdade que já conheci antes, mas sempre esqueço: falar sobre esse estado também me devolve a presença. Reconhecer o que se passa em mim, aqui e agora, seja qual for a natureza, a nobreza ou a grandeza do que está presente, abre as janelas e move os ares para que o espírito regresse e me ocupe.
Neste momento, falo a partir de mim, não a meu respeito. Faço o que digo, porque digo o que faço. Sorrio para mim mesmo e para as paredes à minha volta. Hoje tem uma centelha aqui.
Rodrigo Vergara (www.ria.works) é jornalista, ator improvisador, facilitador de processos de confiança em equipe e fundador do PlayGrounded — a Ginástica do Humor. Seu apelido de infância era… Digo.
*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login