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Provar um prato desconhecido não é apenas sobre conhecer novos sabores, mas sobre se abrir de forma corajosa para a própria vida

“Você não pode dizer que não gosta sem provar”.

Ouvi essa frase do meu pai algumas centenas de vezes ao longo da vida. Ele a proferia sempre diante de um prato no qual eu ou um de meus irmãos fazíamos cara feia e soltávamos um “não quero”. A negativa, em geral, vinha diante de algo novo, uma comida que não fazia parte da nossa referência.

Meu pai se gabava em dizer que ele só não gostava de duas coisas: jiló e peixe cru. De resto, comia tudo. E comia mesmo ou, no mínimo, provava. E, em geral, gostava. Meu pai nunca foi do tipo chato pra comer.

Essa postura tão aberta para provar de tudo me influenciou. Parece que, até hoje, diante de algo diferente, ainda ouço a frase: “Você não pode dizer que não gosta sem provar”. Foi assim que experimentei pratos que a maior parte das pessoas torce o nariz e sequer se dá a oportunidade de experimentar, como buchada, fígado ou carne de rã, alce, búfalo.

Provo preparos de países diversos também. Em geral, tenho boas surpresas. Mas já tive momentos difíceis como uma vez em que provei um prático típico tailandês, feito da maneira original. Isso significa que ele era bem apimentado. Eu não sabia, de verdade, o que era algo realmente apimentado até colocar um pouco daquele molho a base de coco com frutos do mar na minha boca. Estava com um casal de amigos e lembro dela assustada chamando o garçom, pedindo ajuda diante da minha cara completamente roxa depois daquela colherada.

Me recordo até hoje, apesar dessa história ter quase duas décadas. O sabor era tão forte que travou minha respiração. Nunca senti nada igual. Minha boca ficou anestesiada por alguns minutos. E só melhorei após um copo de leite oferecido pelo gerente do lugar – o leite faz cortar o efeito da pimenta.

Mas nem mesmo experiências não muito agradáveis ou até mesmo ruins, me fizeram parar de querer conhecer novos sabores: “Você não pode dizer que não gosta sem provar”. Meu pai tinha razão. A gente não pode se fechar diante de algo novo, seja na culinária ou na vida. Fácil não é. O sabor pode ser amargo ou causar efeitos desagradáveis. Mas também há descobertas inesquecíveis, únicas e que nos marcam para sempre.

Uma delas foi um jantar que tive em um restaurante extremamente tradicional japonês, sem salmão ou cream cheese. Me senti, naquela noite, igual ao ratinho do filme Ratatouille e as explosões incríveis que aconteciam dentro dele quando provava algo bem feito. Ao terminar, tive a exata sensação de ter vivenciado algo muito extraordinário. Algo semelhante ao que senti quando, aos 13 anos aceitei dançar com um garoto em uma festa e dei meu primeiro beijo. Ou, aos 33 e depois de mais uma relação desfeita, coloquei a mochila nas costas e fui viajar sozinha para experimentar…  a vida.

“Você não pode dizer que não gosta sem provar”, aprendi a dizer a mim mesma. E eu provei: muitos sabores e muitos frios na barriga, ao longo dos anos.

Hoje, meu pai não pode provar tudo o que quer ou deseja. Ele está com 84 anos e a vida lhe pregou uma peça. Papai está com diabetes e por isso não come mais algumas das comidas que tanto gosta. Dias desses, minha mãe estava fazendo bolo de maracujá. Ele sentia o aroma que vinha da cozinha e dizia: “pena que eu não posso comer”. Diante disso, achei uma afronta quando meus filhos disseram que não queriam provar o doce e torceram o nariz.

Repeti, então, aquilo que tanto ouvi: “Você não pode dizer que não gosta sem provar”. E eles provaram. Lucas comeu a contragosto e logo disse que não lhe agrava. Lucas não é muito afeito as novidades. Gosta da rotina e do que lhe é familiar sempre. Quer se sentir seguro, sem experimentar. Se manter numa zona de conforto que, na verdade, é uma rede de ilusão. Mas ainda temos tempo, filho, e vou seguir insistindo para que você, dentro dos seus limites, experimente. Já Clara, gostou. Menina corajoso. Não se apequena diante das dificuldades ou dos dissabores da vida.

Termino este texto, repetindo e insistindo: “Você não pode dizer que não gosta sem provar”. Isso vale para mim, para você, para todos nós.


Ana Holanda é diretora de conteúdo da Vida Simples, autora dos livros Minha Mãe Fazia e Como se Encontrar na Escrita, ambos da Rocco. Gosta de cozinhar e de escrever, sua maneira de estar no mundo e de lidar com seus sentimentos mais profundos. Escreve mensalmente nesta coluna.

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