“Eu era feliz… Mas não sabia”!
Por que a felicidade é tão difícil de ser percebida? Schopenhauer acreditava que uma das razões é porque não sabemos realmente o que ela é. Afinal, a felicidade é o quê?
Por que a felicidade é tão difícil de ser percebida? Schopenhauer acreditava que uma das razões é porque não sabemos realmente o que ela é. Afinal, a felicidade é o quê?
À primeira vista pode parecer um absurdo iniciar uma “conversa” sobre felicidade citando o mais pessimista e infeliz dos filósofos. O tema felicidade não é associado a Schopenhauer, nem como filósofo, nem como pessoa. Mas talvez, exatamente por isso, Arthur Schopenhauer seja o mais profundo conhecedor da felicidade de toda a história da filosofia. A infelicidade também ensina sobre o que é ser feliz. E Schopenhauer experimentou grandes doses de infelicidade desde muito cedo.
Aos 17 anos, pouco depois da morte do pai (provavelmente, suicídio), o então adolescente Arthur foi informado pela mãe — por carta — que era necessário para a felicidade dela, sabê-lo feliz, desde que ela não fosse testemunha disso. Algo do tipo “seja feliz, meu amado filho, mas bem longe de mim”. A distância ela já havia providenciado. Após quatro meses da morte do marido, ela mudou-se para outra cidade para perseguir o sonho de ser escritora, deixando o filho para que ele concluísse os seus estudos.
Solidão autoimposta
Depois dessa rejeição, o filósofo viveu boa parte da vida em períodos depressivos e numa solidão autoimposta. Foi um irritante adolescente sabe-tudo, um adulto pessimista e, na maturidade, um solteirão rabugento. Se era considerado um ser insuportável, ele tinha a mesmo opinião sobre os outros. Mas nem sempre. Interessou-se por mulheres, foi rejeitado por elas. O que é incompreensível porque Schopenhauer apesar de ser um misógino nas ideias — “casar é escolher de olhos vendados um saco e rezar para encontrar lá uma enguia no meio das cobras” — era um Dom Juan nos atos. E foi um dos primeiros europeus a se bater pelo direito dos animais.
Feita as apresentações, Schopenhauer chegou a dois veredictos sobre a felicidade. O primeiro é que não somos simplesmente seres racionais que buscam conhecer e compreender o mundo, somos máquinas geradoras de desejos que se esforçam para obter coisas. Diz o filósofo que por trás de cada esforço está uma dolorosa falta de algo. Ocorre que obter isso, raramente nos deixam felizes, pois, ainda que consigamos satisfazer um desejo, há sempre vários outros desejos prontos a tomar o lugar do desejo recém-atendido.
Não desejo!
E se, ciente disso, eu decido que hoje não vou desejar nada. A felicidade vem? Não. Vem é o tédio. Uma vida sem nada a desejar é monótona e vazia. Se temos a sorte de satisfazer nossas necessidades básicas — fome, sede, conforto — para escaparmos ao tédio passamos a desejar itens de luxo, restaurantes caros, grifes famosas. Em nenhum momento chegamos a uma satisfação duradoura. Temos aqui o famoso pêndulo de Schopenhauer: a vida oscila entre o sofrimento e o tédio”.
Olhe pela janela
Isso sou eu, mas e no mundo? Há felicidade? Antípoda de Schopenhauer, o otimista Leibniz (1646-1716) disse que o nosso é o melhor de todos os mundos possíveis. Schopenhauer discorda. Para ele, se há uma ordem no mundo, essa é levar ao mais alto grau a dor e o sofrimento. Na natureza, os seres vivos dividem-se entre devorador e devorado e travam uma luta mortal pela sobrevivência. Na civilização, por toda parte vê-se conflitos, prisões, guerras, escravidão (a lista do filósofo não cabe aqui).
Mas, Schopenhauer, e a alegria da partilha entre amigos? Os banhos de mar? Os amores bem sucedidos? As celebrações? Sim. Ele não nega que há vantagens em viver. Porém, o que ele diz é que as desvantagens estão em um numero muito superior. Para ele, “a vida é um negócio que nem sequer cobre os custos”.
Vejo a felicidade
Não dá para negar que a felicidade existe. Muitos já experimentaram e também viram nos outros. E Schopenhauer não discorda. O que ele afirma é que geralmente estamos enganados sobre o que ela é. Para ele, a felicidade nada mais é do que um momento de ausência de dor e sofrimento; um alívio ocasionalmente sentido entre a realização de um desejo e a busca do próximo. Por exemplo, imagine a satisfação de comprar a sua primeira casa.
O que o deixa feliz nesse ato, diria Schopenhauer, não é o estado positivo de ser o proprietário, mas o estado negativo do alívio das preocupações que vêm de não possuir uma casa própria. E — mais imediato — do alívio de sair do processo estressante de procurar uma casa para comprar. Ok. Sejam quais forem as razões, ainda é felicidade. Sim, diz Schopenhauer — e aqui voltamos ao inicio desse texto — é uma felicidade de curta duração. Logo ali, ao dobrar da esquina, surge novas preocupações que enterram a felicidade recém-adquirida, como o pagamento do empréstimo, do IPTU, a reforma do banheiro etc.
Um estado negativo
Outro exemplo? Raramente sentimos o benefício das coisas que temos enquanto ainda as temos. De domínio público, é o clássico “eu era feliz e não sabia”. Afinal só nos tornamos conscientes dos três maiores bens da vida — juventude, saúde e liberdade — quando os perdemos. Você não sabe o que tem, só sabe depois que deixa de ter.
Esse é só mais um exemplo. Schopenhauer tem uma lista enorme de observações agudas sobre o caráter negativo da felicidade. E todas contribuem para a dificuldade de alcançar e perceber a felicidade. Tendemos a não notar quando as coisas estão bem. Schopenhauer explica que “não sentimos a saúde de todo o nosso corpo, mas apenas a dor no pequeno dedo onde o sapato aperta”.
Ok. Colocamos um curativo rápido no dedo, eliminamos o incômodo e corremos felizes comemorando o bem-estar geral do corpo? Claro que não. Rapidamente, o nosso foco detecta outro problema. “É como uma comida que saboreamos, mas que deixa de existir no momento em que é engolida”, diz ele. Outro entrave? Quando temos um problema pequeno, tendemos a ampliá-lo para que ele possa ocupar o trono da principal preocupação do dia. Geralmente, não notamos isso em nós, mas pense quantas vezes você não viu ao seu redor uma pessoa fazer um drama gigantesco de um problema ínfimo?
Não há nada a fazer?
Todas as observações do filósofo são verdadeiras. Mas é inegável que ainda há muita felicidade por ai. Há várias pessoas que se afirmam felizes ou que se sentiram felizes em algum momento de suas vidas. Há quem acredite que o sofrimento serve para mostrar que algo está errado e precisa ser consertado, por isso ele se mostra mais . O sentimento de felicidade, por outro lado, nem sempre se anuncia. Podemos ter todas as coisas que deveriam nos fazer felizes e ainda assim não nos sentirmos felizes porque elas não chegam à nossa percepção.
E é aqui que entra a arte de viver. Conscientes de que a felicidade nos escorre pelos dedos, podemos assumir um papel ativo para mantê-la. Munidos da lembrança e da reflexão podemos exercitar a mente para que ela se recorde dos tempos maus e comemore o período de paz. Para apreciar as nossas posses, podemos exercitar o pensamento de como era não tê-las. Falamos aqui, neste espaço, sobre algumas dessas práticas, dando como exemplo a obra de Primo Levi.
Felicidade construída
Porém, relembrar nossos próprios infortúnios do passado (e também o dos outros) não basta e nem é a única forma de nos sentirmos bem com o nosso presente. Para sermos felizes, devemos ter um papel ativo para diminuir os nossos sofrimentos e desejos. E aqui Schopenhauer se encontra com os estoicos. Sendo o sofrimento inerente à vida e, os desejos, a substância da qual somos feitos, a proposta não é eliminar o sofrimento, mas resignifica-lo; não é abolir os desejos, mas fazer uma seleção deles. Ao invés de evitar os obstáculos no caminho da vida, o estoico reconsidera esses obstáculos e muda a perspectiva em relação a eles.
Diante de tão aguda lucidez, como foi a vida de Schopenhauer? Arrimado numa vida financeira confortável, a maturidade trouxe-lhe uma rotina santa. Depois do café da manhã, recebia amigos, lia, escrevia. Perto do meio-dia, dirigia-se ao seu restaurante favorito para uma farta refeição. Fazia a sesta, tomava outro café e passeava pelas ruas de Frankfurt com Atma, seu poodle branco. E, todos os dias, pelo menos meia hora, tocava flauta. Uma atividade que, segundo Nietzsche, desmentia a sinceridade do seu pessimismo. Nada mal para quem via com nitidez todas as categorias da infelicidade. Se assim é, nós que sabemos pouco, estamos salvos. A felicidade é mesmo possível.
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