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Schadenfreude: a satisfação pela infelicidade do outro
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O sentimento de que “pimenta nos olhos dos outros é refresco” deixou de ser ocasional. Hoje, é uma prática diária e está longe de ser inofensiva.

Sabe aquela satisfação que você sentiu quando um colega de trabalho foi penalizado pela chefia? Ou quando você não conseguiu evitar um sorriso discreto com a notícia do casal perfeito que anunciou o seu divórcio? Às vezes camuflamos esse sentimento com a ideia de justiça, com o “bem feito” ou com o humor, “o tombo foi engraçado”. Maquiado ou não, considera-se esse sentimento normal e até socialmente aceitável. Afinal todos já se habituaram de que “pimenta nos olhos dos outros é refresco”. Ora, ocorre que essa estranha satisfação que sentimos diante do mal que acontece aos outros, não tem a inocência que aparenta.

No passado, esse sentimento foi escrutinado pelo radar dos pensadores alemães e ganhou um nome específico: schadenfreude. A palavra, sem equivalente em português — e também em outras línguas — pode ser traduzido como “sentir alegria ou satisfação com o dano alheio” (schaden: dano, prejuízo; freude: alegria, prazer). O schadenfreude acontece em duas esferas: a privada e a pública. A primeira é íntima. Às vezes, apenas nós percebemos. É a satisfação quando uma pessoa bem sucedida perde o emprego ou a vizinha linda que foi traída. A pública é mais ostensiva e geralmente vem acompanhada de ironia e escárnio. É o riso provocado pela pessoa que tropeça na rua, a diversão diante de pessoas que protagonizam situações humilhantes ou vergonhosas em programas de televisão e até mesmo aquilo riso “inocente” da torta na cara do palhaço.

Mas o que é?

Freud estudou esse sentimento. Antes dele, Schopenhauer já havia se ocupado do assunto. O mais pessimista dos filósofos escreveu que se a inveja é humana, o schadenfreude é diabólico. Depois deles, pouco se falou sobre o assunto, porém, nós últimos tempos a palavra — assim mesmo, em alemão — voltou a despertar o interesse de estudiosos. E por quê? De acordo com eles estamos vivendo a era do schadenfreude. Com a popularização das redes sociais, o schadenfreude manifesta-se com força total. Em toda parte e a toda hora vê-se a audiência das intrigas e os escândalos das celebridades, os memes ridicularizando políticos e famosos, os discursos de ódio dos haters e os trolls — os comentários provocadores, maldosos e violentos. A prática até ganhou um verbo em português, o trolar.  A oferta é imensa. Como resistir?

É verdade que temos atração pelas tragédias e a curiosidade faz parte da nossa natureza. Ao longo da história, gladiadores se batendo até a morte e enforcamentos públicos atraiam multidões. E continuamos a fazer isso. Na estrada, abrandamos a velocidade para ver um acidente — alguns param. Os crimes hediondos são seguidos pista por pista, com a imprensa explorando essa nossa fraqueza. A questão que se coloca é: será que hoje estamos sentindo mais satisfação pelo fracasso e o azar dos outros? Estamos a nos corromper emocionalmente? E por quê? E quais são os efeitos?

Eu? não!

Como em qualquer cura, precisamos primeiro admitir a doença. É necessário primeiro assumir que sentimos schadenfreude. Os ingleses, há cerca de um século, sustentaram que a palavra não tinha uma equivalente na língua inglesa pelo simples fato de que tal sentimento não existia no país [gargalhada].

O não assumir é justificado. Às vezes, diante da desgraça alheia, não sentimos satisfação, mas alívio por saber que aquilo não está acontecendo conosco. É impossível ler as memórias de Auschwitz narradas no livro Se Isto é um Homem, de Primo Levi, sem se sentir um afortunado por nunca ter passado por algo semelhante. Na mesma linha, o filósofo romano Tito Lucrécio escreveu que “É bom ver o navegador distante lutar contra a tempestade e o naufrágio, não porque nos alegramos com o mal dos outros, mas porque é bom estar livre do tormento” .

Humano, demasiado humano

Porém, o schadenfreude vai além disso — e quase encosta no sadismo. Para Nietzsche esse sentimento, mesmo que inconsciente, é uma forma que utilizamos para nos vingarmos de uma situação ou pessoa. Ele inclusive chegou a afirmar que a sua origem é o sentimento de inferioridade. E aqui chegamos na gênese do schadenfreude: a inveja. Os estudiosos do tema concordam com Nietzsche.  Um amostra: Em 2001, dois estudantes de medicina roubaram medicamentos do laboratório da universidade (caso real), arruinando as suas futuras carreiras. Um era rico, bonito e bom aluno, o outro vinha da classe média e tinha más notas. Uma pesquisa recolhei as impressões de voluntários sobre o caso e constatou que havia um prazer maior em presenciar o infortúnio do primeiro.

O “pimenta nos olhos dos outros” pode comportar o consolo de amenizar as nossas próprias dores — menores em relação a do outro —  e lembrar o quanto somos afortunados; mas também pode despertar o pior em nós. Ele pode acionar o botão da inveja, aumentar o espírito competitivo e os níveis de insatisfação; além do risco de sermos nós próprios protagonistas de ataques de ódio. Resultado: menos paz e satisfação com a vida, mais conflitos, más relações.

Vida única  

E por que esse sentimento? Porque não resistimos a comparar a nossa vida com a dos outros. E aqui o grande perigo. Quando comparamos perdemos a dimensão real das nossas conquistas e das nossas perdas. Deixamos de sentir que temos uma vida confortável, quando comparamos com alguém que tem mais dinheiro do que nós. Quem está casado não aprecia a família e a vida que construiu, mas sim, a vida do solteiro que está sozinho, viaja pelo mundo e “aproveita a vida”.

O solteiro não enxerga as vantagens da vida mais livre e sem família. Não existe o gosto pela conquista de quatro quilos a menos na balança, mas a frustração por não ter a barriga tanquinho da celebridade X. Quando nos comparamos com alguém que julgamos pior, negligenciamos os problemas que precisam de todo o nosso empenho e da nossa capacidade de luta. Contemplar um cenário pior do que o nosso não fará com que os nossos dramas desapareçam. O schadenfreude põe o foco na vida dos outros e impede que apreciamos a nossa vida como ela é, de sermos felizes com o que temos e o que somos.

É verdade que o schadenfreude — assim como a inveja — é um fenômeno universal, atemporal e inevitável. Faz parte da estrutura do psiquismo humano. Porém, ele pode ser resignificado. Podemos adicionar a ele os bons filtros da nossa bagagem emocional. Ao invés de lançarmos mão da inveja e do veneno que cavam ainda mais o sentimento de inferioridade em nós, podemos usar as ferramentas da empatia (para uma prática efetiva leia  https://vidasimples.co/colunistas/empatia-voce-me-compreende/ ). É a oportunidade de ajudar quem precisa, engajar-se em ajudas financeiras e participar em reconstruções. É a chance para oferecer o nosso melhor.

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