Cuidar dos pais: os desafios de quando os papéis se invertem
A mudança na dinâmica da relação é uma transformação emocional que exige respeito à autonomia, acolhimento das dificuldades e autocuidado. Descubra como passar por esse processo com mais leveza e afeto

Há um momento na vida em que os papéis silenciosamente se invertem. As mãos que antes guiavam passam a ser guiadas e os conselhos agora partem de quem ouvia. Quando os filhos começam a cuidar dos pais, a atenção vai além de uma mudança prática e se transforma em um processo de travessia emocional. Um convite inesperado para revisitar memórias, redescobrir afetos e reinventar o amor em sua forma mais paciente.
Isso pode ser considerada uma extensão da gratidão, uma chance de retribuir com delicadeza tudo o que foi recebido durante toda a vida. No entanto, também é um caminho repleto de desafios. Um dos maiores deles talvez seja respeitar a autonomia de quem sempre cuidou, mas agora precisa ser cuidado, muitas vezes, sem estar pronto para aceitar esse novo lugar.
Resistência ao cuidado
Para quem sempre foi independente e tomou a frente de todas as decisões, passar a ser cuidado por alguém pode soar como perda de controle e dignidade. “Vejo que, no geral, a aceitação é muito mais difícil para os pais do que para os filhos. Eles têm dificuldade em reconhecer que os filhos precisam cuidar dos pais”, explica Bianca Berlim Zambon, psicóloga e psicopedagoga.
“Os filhos geralmente sentem uma gratidão muito grande, não como uma obrigação imposta, mas por tudo o que receberam, então oferecem esse cuidado com naturalidade. O difícil pode ser o pai ou a mãe aceitarem que aquele momento chegou.”
Essa resistência, segundo ela, não é uma questão de teimosia: “É muito difícil para uma pessoa que trabalhou a vida toda e que mandava na própria vida, de repente ter que aceitar cuidados e às vezes até ordens dos filhos. Especialmente quando ainda se sentem capazes.” A saída está no equilíbrio e no diálogo. “A pessoa não deixou de ser autônomo, mas precisa de supervisão, porque os riscos aumentam. É importante que ambos compreendam isso juntos”.
Pelo olhar de quem cuida dos pais
E, curiosamente, esse processo que começa com tensão e receios pode se tornar uma ponte afetiva. Mesmo quando a relação entre pais e filhos não era tão próxima, o cuidado cotidiano, os gestos simples e a convivência mais constante abrem espaço para vínculos que não foram possíveis antes. Isso ocorre por diversas questões familiares ou sociais que agora podem se intensificar por meio da escuta e da presença.
A transição também pesa emocionalmente para os filhos. “O primeiro sentimento é: será que eu vou dar conta?”, observa Bianca. “É um sentimento de responsabilidade por alguém que já foi responsável por você um dia. Isso mexe muito internamente, principalmente se a situação envolve doença ou uma perda repentina de autonomia.”
Além da tristeza, o medo e a culpa também aparecem. E a sobrecarga tende a se concentrar em um dos filhos, geralmente aquele que mora com os pais ou tem mais disponibilidade. “Mesmo quando há irmãos, normalmente recai mais em um. E aí entra o peso emocional, físico e financeiro, que pode ser grande”.
Construindo vínculo além do cuidado
O cuidado não precisa (nem deve) se limitar à saúde e à funcionalidade. “É essencial fortalecer o vínculo com os pais de outras formas. Fazer coisas agradáveis, sair para passear, conversar sobre outros assuntos que é de interesse dos dois. Isso fortalece a relação e alivia o peso emocional além da função de cuidador.”
Bianca nos dá um exemplo de experiência pessoal que teve ao cuidar de sua mãe. “Nós, filhos, nos dividíamos para cuidar dela com meu pai. Sempre tentávamos proporcionar qualidade de vida sem invadir sua autonomia. Quando ela queria ir ao mercado, por exemplo, íamos junto. Não deixávamos que fosse sozinha, mas não impedimos esse desejo.”
Cuidar dos pais, nesse contexto, não é impor limites, mas proteger com respeito. “A gente ia acompanhando com perguntas simples: ‘Está tomando os remédios certinhos?’, ‘está se alimentando bem?’. Mas sem tentar controlar a vida dela. É um aprendizado. A gente vai lidando com as situações e aprendendo conforme elas surgem. Não tem como saber tudo antes, é como ter um filho. Você imagina, mas só entende de fato quando vive o momento.”
Cuidar sem se esquecer de si
Buscar equilíbrio entre cuidar do outro e cuidar de si é um dos maiores desafios. “Esse equilíbrio é difícil de alcançar. Por isso que o ideal é dividir funções. Um leva no médico, outro cuida da alimentação. É preciso administrar para que cada um também tenha tempo de se cuidar e não ter um esgotamento físico ou emocional durante o processo.”
A psicóloga ressalta que essa sensibilidade com quem está cuidando também exige atenção. “Costumo dizer que, se todo mundo estiver doente, ninguém consegue ajudar ninguém. Isso vale para tudo.”
Para não se perder nesse processo, é importante se observar. Perceber quando o corpo pede descanso, quando o humor muda, quando a paciência começa a faltar. Estabelecer pequenas rotinas que envolvam prazer e não apenas obrigações. Tomar um café sem pressa, caminhar ouvindo música ou conversar com alguém de confiança pode ajudar a manter o centro emocional. E lembrar que quem cuida também precisa ser cuidado para não se perder.
Como passar por esse momento de forma mais leve
Aqui vão algumas práticas que podem ajudar no momento de cuidar dos pais para atravessar esse período com mais leveza emocional para ambos os lados:
- Aceite que não dá para controlar tudo: nem sempre as coisas vão sair como o planejado. E tudo bem. Flexibilidade emocional é essencial para lidar com os imprevistos do cuidado, que muitas vezes envolvem mudanças de humor, recusas ou até resistência por parte dos pais. Permita-se não ter todas as respostas;
- Anote conquistas do dia: por mais simples que sejam, como um sorriso, um banho tranquilo ou uma boa conversa, escrever essas pequenas vitórias ajuda a mudar o foco do que está difícil para o que está funcionando. Pode ser no caderno, no celular ou em bilhetes colados na parede;
- Comunique suas preferências: falar sobre o que gosta ou não em relação aos cuidados recebidos ajuda a preservar sua identidade e evita desgastes desnecessários. Ser cuidado não precisa significar abrir mão de si;
- Cultive momentos prazerosos: nem tudo precisa girar em torno de remédios e consultas. Escutar músicas que marcaram sua vida, ver um filme com quem você ama, pintar ou relembrar memórias através de fotos antigas também é cuidar da alma.
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