COMPARTILHE
Em busca de si mesma, entre a luz e a sombra
(Foto: Alexander Grey/Unsplash)
Siga-nos no Seguir no Google News
Neste artigo:

Olhei para o arquivo no WhatsApp e he­sitei entre abrir ou não a foto que, naque­le momento, ainda era um grande borrão. Era Estela, e eu sabia disso. A mulher que, até então, morava apenas no meu imagi­nário, mas que agora ganharia traços, cor, formato. Realidade por meio de um rosto.

Marcos, meu namorado, sempre conta as histórias da tia que, na década de 1970 e em plena Ditadura Militar, enterrou em vida Claudio para fazer nascer Estela. “Uma mulher linda e inteligente, uma pes­soa maravilhosa.”

Marcos fala sobre a tia com orgulho, amor e uma ponta de sauda­de. Tudo junto. Ainda sob o governo dos militares, Estela foi para a França. A fama da Cidade Luz era de um lugar com liber­dade para ser.

Por lá, teve trajetória de estrela cadente, entre a luz e a sombra. Conheceu um grande amor e podia ser Estela sem que isso gerasse olhares tortos ou violência por onde passasse. Andava pela rua de cabeça erguida, viajava com o namorado e foi apresentada para a sogra.

Era aceita pelo que carregava na alma. Ganhou dinheiro. Comprou um teto para chamar de seu. Descobriu as festas e a di­versão regada a bebidas e drogas na noite parisiense. A luz e a sombra. Transformou o apartamento em prazer instantâneo. Ví­cio. No meio da tormenta, sem saber como sair da escuridão onde se perdeu, sentiu vontade de estar novamente com a raiz.

Você pode gostar de
Pessoas trans: empatia é a base para desconstruir o preconceito
Conheça Danielle Torres, a primeira executiva trans do Brasil
Olhares femininos: Thamirys Nunes dedica sua vida à defesa de crianças trans

Uma vida de luz e sombra

Decidiu: voltaria para o Brasil. Como? O desespero coloca energia nos pensamen­tos obscuros. Para Estela, eles viraram força de mudança. Pegou uma pedra na rua e jogou na vitrine de uma loja. Vidro estilhaçado, sentou-se no meio-fio da calçada e esperou calmamente pela polí­cia. Como era estrangeira, foi deportada. Pôde, então, estar de novo em casa.

De volta, Estela foi morar com o irmão mais velho. Um ninho. O irmão de Estela é o pai do Marcos. Na cozinha da casa, tia e sobrinho adolescente conversavam sobre música, a vida, sonhos e alguns delírios.

Eram os anos 1980. Mas, aos poucos, Estela foi aprendendo a praticar pequenas despedidas dos amigos. Síndrome da imu­nodeficiência adquirida. AIDS, da qual ela mesma foi vítima. Um dia, deixou a casa do irmão para terminar sua caminhada junto às amigas que, como ela, se foram.

Estela morreu. Mas ainda vive na memória do irmão, nas lembranças do Marcos e ago­ra nas minhas também. Abri a foto. Prazer, Estela. Você é tão linda quanto imaginei.

➥ MAIS DE ANA HOLANDA
Os cantos escuros que a gente mesmo cultiva
A escrita é uma forma de se relacionar com o divino
Como lidar com o envelhecimento?


Conteúdo publicado originalmente na edição 272 da Vida Simples

0 comentários
Os comentários não representam a opinião da revista. A responsabilidade é do autor da mensagem.

Deixe seu comentário