Em busca de si mesma, entre a luz e a sombra
No espaço entre a sombra da vontade de ser e a luz de assumir nossa essência, existe o cultivo da coragem em sustentar o que a gente é
Olhei para o arquivo no WhatsApp e hesitei entre abrir ou não a foto que, naquele momento, ainda era um grande borrão. Era Estela, e eu sabia disso. A mulher que, até então, morava apenas no meu imaginário, mas que agora ganharia traços, cor, formato. Realidade por meio de um rosto.
Marcos, meu namorado, sempre conta as histórias da tia que, na década de 1970 e em plena Ditadura Militar, enterrou em vida Claudio para fazer nascer Estela. “Uma mulher linda e inteligente, uma pessoa maravilhosa.”
Marcos fala sobre a tia com orgulho, amor e uma ponta de saudade. Tudo junto. Ainda sob o governo dos militares, Estela foi para a França. A fama da Cidade Luz era de um lugar com liberdade para ser.
Por lá, teve trajetória de estrela cadente, entre a luz e a sombra. Conheceu um grande amor e podia ser Estela sem que isso gerasse olhares tortos ou violência por onde passasse. Andava pela rua de cabeça erguida, viajava com o namorado e foi apresentada para a sogra.
Era aceita pelo que carregava na alma. Ganhou dinheiro. Comprou um teto para chamar de seu. Descobriu as festas e a diversão regada a bebidas e drogas na noite parisiense. A luz e a sombra. Transformou o apartamento em prazer instantâneo. Vício. No meio da tormenta, sem saber como sair da escuridão onde se perdeu, sentiu vontade de estar novamente com a raiz.
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Uma vida de luz e sombra
Decidiu: voltaria para o Brasil. Como? O desespero coloca energia nos pensamentos obscuros. Para Estela, eles viraram força de mudança. Pegou uma pedra na rua e jogou na vitrine de uma loja. Vidro estilhaçado, sentou-se no meio-fio da calçada e esperou calmamente pela polícia. Como era estrangeira, foi deportada. Pôde, então, estar de novo em casa.
De volta, Estela foi morar com o irmão mais velho. Um ninho. O irmão de Estela é o pai do Marcos. Na cozinha da casa, tia e sobrinho adolescente conversavam sobre música, a vida, sonhos e alguns delírios.
Eram os anos 1980. Mas, aos poucos, Estela foi aprendendo a praticar pequenas despedidas dos amigos. Síndrome da imunodeficiência adquirida. AIDS, da qual ela mesma foi vítima. Um dia, deixou a casa do irmão para terminar sua caminhada junto às amigas que, como ela, se foram.
Estela morreu. Mas ainda vive na memória do irmão, nas lembranças do Marcos e agora nas minhas também. Abri a foto. Prazer, Estela. Você é tão linda quanto imaginei.
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Conteúdo publicado originalmente na edição 272 da Vida Simples
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