Livros para viver o luto
Confira uma lista de livros sobre o luto, além de uma entrevista completa com o poeta e jornalista Fabrício Carpinejar
“Em um determinado momento da vida eu percebi que o enlutado não tem liberdade para se emocionar, para chorar, para continuar falando indefinidamente sobre o ente querido. A sociedade cobra uma superação, num tempo que não condiz com o tempo da dor, é uma imposição”, disse Fabrício Carpinejar, sobre o luto.
Educado, muito animado e com um tom amistoso, quase jovial. Foi assim que o famoso autor das mais belas e cortantes frases “de guardanapo” me recebeu numa ligação de quase uma hora de duração. Embora o objetivo fosse falar sobre “Manual do luto”, seu livro mais recente lançado pela editora Record e sem nenhuma surpresa, mais um fenômeno de vendas, acabamos conversando sobre influências literárias, amenidades, a alegria de ter a literatura como refúgio, e claro, as mais diferentes formas de sentir e ressignificar as perdas.
“Um dos pontos básicos do livro é não comparar lutos. Fazendo uma espécie de ranking ou hierarquia de qual é o pior sofrimento. O pior sofrimento, sem comparação, é a inversão do ciclo da vida, é perder um filho. Mas, o que não pode acontecer é uma pessoa querer comparar seu sentimento, a extensão e o impacto dele, com outra. O que eu quero não é propor que as pessoas se curem do luto. Não é uma doença para se curar. O meu livro é a aceitação pura dessa dor, desse olhar dolorido que vai perpassar uma existência inteira. A ideia do Manual é enxergar, acolher, viver e entender o que é o luto, sem mascarar. Quando uma pessoa perde os avós ela sente aquela dor profunda, mas não entende que os seus pais agora são órfãos. Por isso a gente precisa entender o luto como algo grande, que resvala por todos os lugares, só que de formas diferentes.”
Uma entrevista marcante
Confesso que não sei quantificar o número de entrevistas ou textos que fiz ao longo dos anos, desde os tempos de faculdade até hoje, ultrapassada a primeira década de formada. O fato é que uma pergunta me acompanha em toda entrevista. E não vou negar, estava ansiosa para fazer ao Carpinejar, que a essa altura já tinha me surpreendido de tantas formas. A começar pela simplicidade, coisa rara no meio artístico, em que muitas vezes o sucesso da obra envaidece o autor ao ponto de tornar qualquer entrevista uma breve tortura, em que o pobre jornalista não parece estar jamais a altura do entrevistado, que pode sair de sarcástico a monossilábico e desinteressado em apenas uma pergunta.
Então, quando surgi com o meu clássico “se você pudesse me sugerir um livro, qual seria?” Fui surpreendida por bons minutos falando de literatura e descobri que temos muito em comum também no âmbito das paixões. Ambos não conseguem falar de livro sem citar Manuel Bandeira, Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade quando o quesito é poesia. Na crônica, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Moacyr Scliar, que não por acaso foi o cronista predecessor de Carpinejar no jornal gaúcho Zero Hora. Os dois inclusive mantiveram, até a morte de Scliar, uma relação de grande respeito e admiração.
“Muito curiosa a sua pergunta, ou melhor, o pedido para eu indicar um livro. Mais que curiosa, uma missão difícil. Todo leitor tem suas leituras queridas, não só pela qualidade da obra, mas por experiências acumuladas ao longo da vida e que ressignificam aquele texto. Não por acaso, é comum que eu goste muito de um livro, comente com um amigo e ele não sinta a mesma coisa. Mas, vou deixar como indicação para você e os leitores da sua coluna o livro que estou lendo no momento: Tempo e cidade, do Herman Hesse.”
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A falta de liberdade para viver o luto
Ao longo da conversa não pude deixar de confidenciar ao autor que durante a leitura do livro deixei de lado, ainda que sem querer, a jornalista e a leitora, para derramar algumas lágrimas. Pensar o luto é enfiar o dedo na ferida, bem no buraco das lembranças. E foi durante essa confissão que Carpinejar completou o raciocínio que deve ser feito ao pensar que a morte, apesar de inevitável, não é necessariamente natural. E não existe nada que antecipe ou diminua a dor de quem perde alguém, ainda que em algum momento a vida volta a aparente normalidade.
“As pessoas não são inspiradas a manter seus mortos vivos. Elas são castigadas ao serem obrigadas a silenciar suas perdas, é uma repressão, para evitar desconforto. “Ainda está falando disso? Não superou até agora? Ele morreu, mas você continua vivo!” Isso acaba freando a naturalidade do processo e fazendo com que o luto seja abreviado, não seja digerido.
Assim como eu, Carpinejar é jornalista. Além disso, acumula também as funções de cronista e poeta. E a sua forma de ver o mundo é o que encanta seus muitos seguidores nas redes sociais, leitores ávidos e admiradores. O carisma faz com que o gaúcho seja também um palestrante que lota auditórios em questão de minutos. Mas, o que me atraiu de verdade foi o bom senso, tão raro nos tempos atuais, de quem resume um longo e complexo raciocínio assim:
“O luto vai depender sempre do grau de entrega. Quanto maior a doação, maior o luto. Se você tinha num cachorro o alicerce da sua alegria, você vai ter uma lacuna irreparável e infinita quando ele se for. E não é adotando um outro que a perda vai ser amenizável. Carinhos não são transferíveis. É um patrimônio único e criado entre você e quem se foi. Assim como quem perde um filho, tendo outro, não esquece a perda ou deixa de sentir.”
Outras considerações de Carpinejar
Autor de mais de quarenta livros de variados gêneros como a crônica e a poesia, Carpinejar é taxativo quando o assunto é o ofício da escrita: “literatura é disciplina. Inspiração vai sempre nos levar ao desleixo. Se você só trabalhar quando estiver inspirado nunca vai aprender a escrever. Não tem como aprender a dançar indo a poucos bailes na vida. Você pode ter a ideia brilhante, mas não ter linguagem para sustentar ou até dominar o modo de dizer, mas não ter o que dizer. Se a gente prestar atenção, os assuntos são sempre os mesmos, as histórias de amor são parecidas, as tristezas semelhantes, o que modifica é a sua pronúncia, o sotaque, o vento da tua escrita. E você demora muito para ter a simplicidade. O caminho inicial de todo escritor é a afetação, ele vai aprendendo a fazer uma bagagem cada vez menor. É assim nos livros e na vida. A maturidade traz leveza.”
Antes de encerrar nossa conversa, não sem alguma dor, como uma criança que descobre o melhor amigo numa ida à praia e se despede sem querer acreditar que aquela pode ser a última vez que vão se ver, decidi perguntar sobre a visão mística da coisa toda. Afinal, o que acontece depois da perda?
“Eu acredito até numa visão infantil que nós temos uma provação: hoje a gente tem o corpo visível e a alma invisível. Então, você passa a vida inteira cuidando do que é invisível, sem saber se você está sendo bom ou não, justo com você ou não. Quando a gente morre, a nossa alma vira corpo e nosso corpo vira alma. Se você maltratou o seu corpo, foi omisso, castigou, ele vai se converter na sua alma. E por isso precisamos cuidar, ao mesmo tempo, da saúde física e emocional. Não posso dizer que isso vai acontecer, mas é uma visão cármica. Ontológica. Tudo que a gente faz aqui, com o corpo e a alma, vai interferir. Eu acredito em legado.”
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