Olhares femininos: Hananza constrói diálogo sobre negritude no Brasil
Através da arte e da palavra, Hananza questiona o privilégio branco e traz letramento para a causa antirracista na sociedade.
Hananza faz da arte um instrumento para revisitar os desafios que permeiam a população negra. A filósofa é um dos nomes à frente da luta antirracista no Brasil. Como escritora, é autora do livro “Ainda Estamos Aqui: uma Breve Parte de Nossa História Negra”, que nasceu com o propósito de “informar para transformar”. Hananza defende que saber a nossa história, enquanto povo brasileiro, nos impede de voltar para o lugar que lutamos tanto para sair.
Resgate da ancestralidade e luta antirracista
Além de escritora e cantora, também atua como mestre de cerimônia e consultora étnico-racial para produções audiovisuais. Como palestrante, Hananza já falou sobre letramento racial em diversas empresas e instituições, levando consciência sobre a trajetória e a realidade dos povos afrodescendente no Brasil. “A grande questão é o privilégio branco, um lugar no qual a cor da sua pele não vai te negar direitos e oportunidades”, explica Hananza.
Na vida pessoal, fez um importante mergulho para resgatar sua ancestralidade, fato fundamental para a sua incursão na temática antirracista. “Ser mulher, para mim, é ser um agente transformador e um agente de confluência”, relata Hananza, com o termo que adotou após a leitura do livro “A terra dá, a terra quer” de Nego Bispo, figura que admira muito.
Confira a entrevista completa com Hananza
Hananza compartilha sua história de luta e resistência com a Vida Simples.
Você tem participação ativa na literatura, com sua obra “Ainda estamos aqui”. Como surgiu a ideia do livro?
Eu sou uma mulher negra que parte da classe média da zona sul do Rio, mas nem sempre foi assim. A minha avó era doméstica analfabeta e deu oportunidade à minha mãe de estudar para ela melhorar sua vida. Minha mãe conseguiu ter um afago, um alívio, e eu sou essa segunda geração que vem para modificar a vida e a história da minha família preta.
O questionamento sobre raça, para mim, chegou meio tarde, porque não é parte da geração das nossas avós, da nossa mãe, falar sobre isso. Minha avó não falava sobre racismo dentro da casa dela e minha mãe não falava muito para gente também. Minha mãe entendia muito pouca coisa de racismo. Venho desse lugar e pensei “o que eu, Hananza, estou fazendo concretamente para que essa luta se desenvolva e para que a nossa voz se multiplique?”. Porque eu sou uma pessoa que tem acesso. Fui estudar, porque a gente sabe muito pouco, porque não estudamos isso na escola, porque queimaram os arquivos referentes à escravidão no Brasil, porque nos negaram por anos termos e contarmos nossas próprias histórias. É preciso retomarmos nossa narrativa, valorizarmos nossos saberes, conversarmos mais dentro de casa sobre a gente. Em contrapartida, muitas vezes a academia fala para a própria academia. Precisamos dar acesso.
Fiz o livro porque pessoas não acadêmicas precisam ler e entender. Eu senti necessidade de trazer intelectuais negros que abriram portas para que eu esteja escrevendo hoje, mas ser essa mediadora e fazer essa tradução para uma galera que não está na academia, que não consegue entender uma linguagem rebuscada e mais burocrática.
Sendo palestrante antirracista, como você enxerga a importância de ter um letramento racial e incentivar mais conhecimento acerca de temas raciais para outras pessoas?
Uma coisa é certa, a nossa luta só terá sucesso quando nós, negros, nos organizarmos ainda mais e quando as pessoas brancas reconhecerem seus privilégios e tomarem pra si a responsabilidade das consequências do processo de escravização de nossa gente. Portanto, é importante que nós, negros, acessemos nossas histórias e possamos entender o tamanho da força e resistência de nossos ancestrais, reconstruirmos nossa autoestima e entendermos nosso povo como essa grande potencia que é. Minha palestra passa por esse reconhecimento de nossa gente e nossa força e reforço de nossa autoestima. Um guerreiro que sabe de sua força e seu valor sai mais confiante para a batalha.
Dá raiva quando a gente entende o privilégio branco, quando a gente entende todos os direitos que nos são constantemente negados. Entendi que minha saída para manter minha saúde mental seria transformar essa raiva, potencializando e canalizando para outro lugar, o lugar do diálogo. Sabemos que o racismo é responsável por índices altíssimos de violência que vitimiza jovens negros a cada 23 minutos aqui no Brasil e a população negra em geral. A violência gerada pela estrutura racista na qual este país se alicerça, não afeta apenas a população negra, mas a sociedade como um todo.
Este letramento racial, portanto, não é apenas destinado ao povo preto, como forma de mergulharem mais fundo em suas histórias e se preparem mais consistentemente para a luta, mas é também, e principalmente, para os não negros que poderão nesta conversa refletir acerca de suas responsabilidades, privilégios e possibilidades antirracistas, a fim de contribuírem para uma sociedade melhor, mais igual e mais justa. É preciso que levemos essa discussão às empresas, escolas, e a todo grupo de pessoas interessadas, verdadeiramente, na luta e principalmente na mudança.
A ideia da palestra é informar para transformar.
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Você também canta. Como é a sua relação com a música e com a arte em geral?
Sempre fui uma pessoa extremamente inquieta artisticamente, sempre quis responder às questões humanas e às questões do mundo a partir da arte. A filosofia me ajudou a criar essa atmosfera de reflexão que eu carrego para minha vida e para a arte. A música também me conectou muito com esse lugar das respostas ou mesmo das perguntas – porque perguntar também é caminhar.
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Qual é o papel da arte, incluindo a escrita, na luta antirracista?
Primeira coisa: a arte é acesso. Ela é múltipla, ou seja, você pode pintar, escrever, cantar, atuar, dançar… A arte chega longe e surge muita conexão e identificação a partir disso, né? Ela não é só um lugar de luta e resistência, mas também um lugar de entretenimento.
Nós somos um povo que tem uma saúde mental muito vulnerável e fragilizada por tudo que vivemos agora, em um país que se alicerça numa estrutura extremamente racista. A gente sofre isso todos os dias e talvez a arte possa ser também um lugar de desafogo, um lugar de alívio, uma válvula de escape. A partir do momento que também fazemos parte disso, cuidamos da nossa saúde mental e esse acaba virando um lugar de resistência.
Quais obras literárias e filosóficas inspiraram sua trajetória e seu trabalho como palestrante, escritora, filósofa e produtora?
Tem uma obra, para mim, que é necessária e obrigatória para qualquer ser humano na Terra que é “Um Defeito de Cor”, da Ana Maria Gonçalves. É uma obra que traz muita dor, mas muita lucidez também.
Uma segunda obra é “O Quarto de Despejo”, da Carolina Maria de Jesus. Ela toca na gente muito profundamente. É muito triste você pensar que a nossa gente precisou estar nesse quarto de despejo brigando por comida com bicho. A gente que fez esse solo ser fértil e continuar fértil. Todos os nossos ancestrais cuidaram de uma terra que hoje não dá nada para a gente.
Na música, Principia do Emicida, que para mim é um dos grandes intelectuais que temos atualmente. Ele canta “enquanto ancestral de quem ‘tá por vir, eu vou /Jantar com as menina’ enquanto germina o amor”. Isso me tocou tão profundamente durante tanto tempo e me toca ainda porque caramba, a gente precisa agir mesmo, pois tem uma galera que vem depois da gente contando conosco.
Porque se a gente não tivesse tantos africanos escravizados, que morreram porque não não se calaram, que preferiam enfrentar, onde estaríamos hoje? A gente teve essa galera que não se calou e que teve coragem de falar mesmocom todas as chibatadas que tomou. Estamos aqui hoje para tomar as nossas, porque temos esse compromisso com quem está vindo. Nós somos ancestrais deles.
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Que mulher ou quais mulheres foram essenciais para a sua trajetória e te deram o apoio/suporte que você precisava para chegar onde está hoje?
A primeira mulher que eu penso é minha avó Batista. O meu livro é dedicado a ela. Ela era uma mulher silenciosa e silenciada. Ela morreu com 54 anos, de infarto. O infarto dela foi o acúmulo de toda dor e todas as palavras que ela não pode falar. Eu não sei se ela tinha alguma felicidade, mas ela não falava, não reclamava de nada mesmo com tudo que passava. Minha avó é a pessoa que eu dedico a minha vida, porque ela foi nossa grande matriarca e a ancestral que permitiu que nossa família se mantivesse de pé e caminhasse.
No meu livro, no capítulo “A força de onde eu vim”, conto um pouco da história dela e falo, através de uma carta póstuma que escrevi para ela, que a gente “deu certo”. Eu falo “Vó, a gente deu certo, muito obrigada”.
Penso também na minha mãe Nilce, a pessoa mais importante da minha vida e a quem eu devo tudo, e na minha tia Nélia, essas são duas forças da natureza.
Hananza ao lado de sua mãe e sua tia. Foto: Arquivo Pessoal.
Você já deve ter vivido experiências que talvez não tivesse vivido se não fosse mulher. Qual delas mais te marcou e por quê?
A maior experiência que vivemos como mulher é a experiência do medo constante. Eu tenho medo de pegar Uber e entrar no carro de um homem, porque eu não sei para onde ele pode me levar. E esse medo eu tenho todo dia. Medo de andar numa rua deserta, sozinha, sendo mulher. São medos pelo histórico de violência contra mulher, aumento da estatística de feminicídio, e histórico crescente de casos de misoginia.
Como você enxerga o papel das mulheres na sociedade contemporânea em termos de promover a diversidade e a inclusão?
O acesso nos trouxe a informação, o que nos faz estar mais preparadas para enfrentar o machismo, a transfobia, a homofobia, a gordofobia, o racismo. A informação traz para gente um lugar de potência e nos coloca no lugar de agentes transformadores mais fortes e mais preparadas. A nossa geração de mulheres é uma geração que consegue acessar melhor as suas próprias defesas, porque a informação nos dá esse escudo.
Mas, ainda falta a união, no sentido de botar em prática a verdadeira sororidade. Porque nós somos seres muito criados para competição. Sinto que competimos com nós mesmas o tempo inteiro, é isso é um lugar muito problemático. Temos que entender que se nos unirmos, conseguiremos chegar mais longe nos ajudando e compartilhando.
Acompanhe a série especial “Olhares femininos sobre diversidade”
“Olhares femininos sobre diversidade” é uma série de entrevistas publicadas pela Vida Simples em celebração ao Dia da Mulher. Nela, conversamos com profissionais engajadas na inclusão de pessoas diversas na sociedade. Afinal, não existe um só jeito de ser mulher. Acima de tudo, elas são inspirações de como podemos usar a nossa voz para reconhecer e valorizar as diferenças que tornam a jornada de cada mulher única, singular e cheia de potência.
Quatro entrevistas já estão no ar:
- Tabata Cristine, palestrante e criadora de conteúdo na área de autismo e TDAH, nos revela as contribuições femininas diante da neurodiversidade;
- Lelê Martins, a “Blogueira PcD” (Preta com Deficiência), incentiva mulheres em suas jornadas de autoestima e autoaceitação para mudar o rumo de suas histórias;
- Hananza é escritora e filósofa. Como ativista na causa antirracista, propõe reflexões valiosas sobre o racismo estrutural no Brasil;
- Thamirys Nunes é mãe de uma menina trans de 9 anos. Ela criou a ONG Minha Criança Trans para empoderar famílias e desmistificar tabus da sociedade sobre o assunto;
Já no dia 22 de março, vamos contar as histórias de:
- We’e’ena Tikuna, formada em artes plásticas, é uma estilista e ativista indígena premiada, trabalhando pela inclusão social dos povos indígenas por meio da difusão da sua arte.
- Nath Finanças fala de “finanças reais para pessoas reais” para capacitar as pessoas a tomarem melhores decisões financeiras, estimulando epecialmente as mulheres a conquistarem a independência.
Para receber diretamente no seu e-mail as entrevistas do especial do mês da mulher “Olhares femininos sobre diversidade”, cadastre-se em nossas newsletters. Elas serão divulgadas aqui no portal e na newsletter “Simplesmente Vida”, enviada aos domingos.
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