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O mínimo que é o máximo
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Muitas vezes consideramos aquilo que é pequeno como algo menor. Aí mora o perigo. Na vida, os detalhes nunca podem ser esquecidos

Por força de formação, tenho especial atração pelos temas das ciências naturais. Adoro ler sobre os avanços da medicina e da engenharia, e me encanto particularmente com as descobertas da biologia, afinal, fui professor dessa disciplina por mais de duas décadas. E tenho notado que as descobertas estão cada vez mais concentradas nos pequenos detalhes que explicam esse fenômeno a que chamamos de vida.

Recentemente reli um texto antigo, relativo a uma pesquisa conduzida por um químico alemão chamado Justus von Liebig, considerado o pai da química orgânica, aquela que estuda os compostos químicos com base no Carbono, e que dão corpo aos organismos vivos. Nosso corpo é química orgânica em estado dinâmico. E assim é toda a vida do planeta.

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Liebig, cuja alma mater é a Universidade de Bonn (Alemanha), enunciou uma lei que acabou recebendo um nome curioso, e que reforça a importância de prestar atenção aos detalhes. Chama-se Lei do Mínimo, cujo enunciado é de uma simplicidade desconcertante: “O sucesso de um organismo em um meio ambiente depende de que nenhum fator de sobrevivência exceda seu limite de tolerância”.

Entendendo o limite de tolerância

Limite de tolerância? Que coisa é essa? Vejamos. O que ele descobriu é que, para que um ser vivo continue vivo, todos os fatores necessários à sua sobrevivência devem estar presentes, de nada adiantando haver excesso de alguns se ao menos um componente, por menor que seja, estiver em falta. Só haverá vida com tudo o que o compõe. Uau! Isso explica muita coisa, e não só na biologia. O que Liebig concluiu, acertadamente, é que “o organismo não é mais forte que o elo mais fraco de sua cadeia ecológica de necessidades”. Faz todo o sentido, não é? Estudando a agricultura, ele percebeu, por exemplo, que muitas lavouras minguavam, não por falta dos nutrientes necessários em grandes quantidades, como água e dióxido de carbono, mas por insuficiência de uma substância que a planta necessita em quantidades minúsculas, como o zinco.

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Com o tempo, a Lei do Mínimo passou a ser aplicada a outras áreas, como a gestão e a economia, e estudada por outras ciências, como a psicologia. É natural, dizem os psicólogos, que a atenção do cérebro seja direcionada para componentes abundantes na constituição de um fenômeno qualquer. Tudo o que é pequeno, por ser menor, passa a ser, automaticamente, considerado menos importante. E aí mora o perigo. Lembro de uma experiência pessoal que me marcou com relação ao tema “pequenos detalhes”.

Experiências vividas

Certa vez, fiz uma viagem de moto até Cuzco, no Peru, saindo de São Paulo. Pode parecer uma aventura perigosa, mas, quando cercada dos devidos cuidados, é tranquila, apesar de emocionante. As motos são boas, os equipamentos protegem, a experiência dá segurança. Eu viajei na companhia de meu amigo Júlio, que, entre outras coisas, tem o título de primeiro brasileiro a ter estado nos dois polos do planeta. Seu livro Rumo aos Polos (Alegro) tem passagens de tirar o fôlego. Aproveitando a época menos chuvosa de agosto, pegamos a estrada, cruzando os estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia e Acre, onde fizemos uma parada, antes de cruzar a fronteira com o país andino.

Deixamos as motos estacionadas no hotel em Rio Branco, cujo proprietário, além de simpático, também apreciava viajar sobre duas rodas, e voltamos a São Paulo de avião, para atender algumas demandas profissionais. Eu, entre outras coisas, tinha que participar de um congresso de recursos humanos, do qual sou membro da organização há mais de dez anos. Foi uma semana de muito trabalho, mas minha cabeça estava excitada com a sequência da aventura.

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Quando chegou o dia, nos encontramos no aeroporto para continuar a viagem. Voar até Rio Branco não é o mesmo que tomar uma ponte aérea para o Rio de Janeiro. Há poucos voos e a viagem é longa. De moto, rodando perto de 900 quilômetros por dia, levamos cinco intensos dias. De avião, poderíamos ter cruzado a Europa no mesmo tempo. Como o Brasil é grande…

Ao chegar ao hotel, fomos direto ver nossas queridas máquinas. Elas estavam lá, quietinhas, lindas, ansiosas para pegar a estrada de novo. Eu juro que quase vi minha KTM Adventure balançar o para-lama traseiro quando me viu.

Amor, tolerância…

Eu acariciei seu tanque de gasolina, apertei seus pneus para sentir a pressão e, nesse momento, meu coração parou… Me dei conta de que, na pressa de sair de casa, depois de uma semana agitada, joguei na mochila tudo o que era necessário para continuar a viagem, menos… veja só… menos um pequeno detalhe: a chave da moto. Uma moto de 300 quilos, própria para encarar um rali, dotada de um motor de 1000 centímetros cúbicos, carregada com equipamentos de localização, de proteção e de conveniência, criteriosamente acomodados, transformava-se em uma massa metálica totalmente inerte sem uma diminuta lâmina de aço inoxidável com ranhuras desenhadas em sua superfície, capazes de permitir seu encaixe perfeito em um orifício em seu cockpit moderno, dando origem à ignição, ao ronco, ao movimento.

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Sem chave, sem moto. Sem estrada. E sem nada. Em minha imaginação, Liebig sorriu como quem diz: “Não falei?”. A Lei do Mínimo estava sendo aplicada com toda intensidade e crueldade. A única alternativa era fazer a chave chegar a tempo de continuar a viagem. Mas como mandar uma encomenda em um final de semana? Três a quatro dias seriam necessários. Foi quando o valor do companheirismo se fez valer. Lu, minha esposa, que iria de avião com a Sandra, esposa do Júlio, para nos encontrar em Cuzco e então visitar Machu Pichu, voou para Brasília e de lá conseguiu uma conexão para Rio Branco, com a chave na bolsa. Isso é que é amor, dizem meus amigos… Haja Limite de Tolerância.

Detalhes…

De lá, Lu teve que cruzar de ônibus a Amazônia peruana até Puerto Maldonado, onde então conseguiu um avião até a terra dos incas. Obrigado, meu amor… Enquanto isso, o piloto-que-esqueceu-a-chave-da-moto seguia faceiro pela Estrada do Pacífico. De fato, detalhes tão pequenos deveriam ser coisas muito grandes para esquecer. Na química. Na moto. No casamento. Nos negócios. Na vida…

Eugenio Mussak escreve há anos por aqui e, às vezes, esquece um pequeno detalhe: o prazo de entrega.

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