Falhei, e agora?
Apesar de socialmente menosprezado, o fracasso mostra o que não funciona, aponta novos caminhos e impulsiona o salto para dias melhores.
Apesar de socialmente menosprezado, o fracasso mostra o que não funciona, aponta novos caminhos e impulsiona o salto para dias melhores
Uma das tarefas mais difíceis na educação do meu filho tem sido orientá-lo para lidar com a frustração que vem depois dos erros e dos fracassos. A fase dos 3 aos 7 anos, por conta do pequeno repertório emocional, exigiu criatividade e paciência. Mas melhorou com a prática. Agora ele é um adolescente e já percorreu um longo caminho nesse aprendizado. Isto é, lidar com o fracasso, a derrota, a falha — e toda a frustração que se segue — não é fácil.
Relutamos em admitir que escolhemos a profissão errada, o trabalho, o cônjuge… Não aceitamos que, depois de meses de investimento, o tão idealizado projeto afinal não é viável. Alguns resistem em assumir um divórcio porque está implícito que fracassaram no casamento. E se errar é humano, mais humano ainda é atribuir o erro aos outros. Quando não conseguimos assumi-lo ou negá-lo, há ainda um caminho possível: responsabilizar o outro, a sociedade, a economia…
Mas, os erros acontecem. Seja por nossa própria incompetência, imaturidade, inflexibilidade, inadaptação ou mesmo por motivos externos que escapam ao nosso controle. Não importam as razões, é sempre difícil assumi-los. Escondemos dos outros porque temos vergonha e medo de não sermos compreendidos — e perdoados. E há fracassos que escondemos até de nós mesmos. Tememos que os nossos fantasmas e inimigos internos também não nos perdoem.
Aprende-se na escola!
Se é humano, demasiado humano, por que ainda somos tão reticentes para encarar o fracasso? Nos últimos anos, o filósofo francês Charles Pépin resolveu debruçar-se sobre essa pergunta na obra “As virtudes do fracasso”. De acordo com ele, o modernidade trouxe um endeusamento do sucesso, do positivo. Sem espaço, o fracasso virou uma espécie de demónio a ser evitado a qualquer custo. Para ele, vivemos em uma sociedade doente, incapaz de aceitar o erro, as falhas, as diferenças. O sistema escolar não favorece a singularidade, as crianças são obrigadas a se adaptar às normas. Exige-se que todos os alunos sejam iguais, que respondam às mesmas regras, que falem a mesma língua, que aprendam a mesma história e depois a repitam com a mesma retórica. Esse trabalho é continuado pelas empresas que punem o erro de forma implacável. Alguns, inclusive, pagam — em dinheiro — pelo erro.
Do ponto de vista macro, os governos seguem a mesma lógica e tentam travar as singularidades em nome de um sistema homogêneo. A China — talvez o exemplo mais radical — “pedem” aos cidadãos para se “harmonizarem” com o estado. Em nome da excelência e da perfeição, o erro e o fracasso — parte e condição da nossa humanidade — são banidos. O clássico “errar é humano” está completamente em desuso.
Eu escondo!
Pépin afirma que apesar de toda a rejeição coletiva, a frustração que advém do fracasso é o que nos torna humanos. De acordo com o pensador francês, a inteligência de um indivíduo é quantificada pela capacidade de analisar e corrigir seus erros. Nesse sentido, o fracasso não é apenas inevitável, mas também necessário para a compreensão de desejos e prioridades. Ele é o motor do autoconhecimento e também uma espécie de ajustador de rotas.
O pensador afirma que apesar da filosofia não tratar diretamente do assunto, ela deixou pistas. Hegel, por exemplo, considerava necessárias as experiências negativas e os reveses. Assim como não existe tese sem antítese, o sucesso não existe sem o fracasso. O fracasso é antecâmara e parte do sucesso. Ou ainda, o êxito é considerado um fracasso corrigido. Pépin cita inúmeros líderes que amargaram fracassos e depois, tal como a ave mitológica Fênix, ressurgiram das cinzas.
Mundo novo
Para além de portador da semente do êxito, o fracasso só acontece no terreno da aventura e da inovação. Quantas invenções e descobertas históricas não vieram à luz pelas mãos do fracasso. O descobrimento da América deveu-se a um erro de navegação, a penicilina surgiu porque o químico esqueceu de guardar as amostras… a lista é longa. Pépin acredita que as virtudes do fracasso serão cada vez mais reconhecidas e que a obsessão pelo sucesso está em declínio.
Vejamos: há anos que Michael Jordan se dedica a dar palestras sobre os fracassos de sua carreira e o que aprendeu com eles. O tenista suíço Stanislas Wawrinka tatuou no braço esquerdo uma frase do escritor irlandês Samuel Beckett: “Tenta. Fracassa. Não importa. Tenta outra vez. Fracassa de novo. Fracassa melhor”. Questionado sobre a frase, o suíço afirma que aceita as derrotas de forma positiva, porque é algo que vai sempre acontecer. Coincidência ou não, desde a tatuagem, a carreira de Wawrinka teve um grande impulso. Venceu vários torneios, com triunfos sobre Rafael Nadal e Novak Djokovic (os dois primeiros do ranking mundial).
Fuckup Nights
E, claro, há o surpreendente Fuckup Nights (algo como “Noites do fracasso”, numa tradução educada). Trata-se de um evento onde os participantes contam os seus fracassos. É uma espécie de TED ao avesso. Pessoas sobem ao palco e — em apenas 10 imagens e sete minutos — contam os seus falhanços. A principio, um evento desses parece uma péssima ideia. Tudo bem assumir o fracasso, mas torná-lo público?
Bem, confirmando as teorias de Pépin, as Fuckup Nights transformaram-se num fenômeno global e consta no calendário anual de 90 países e está presente em mais de 300 cidades. A razão? Por causa de empreendedores, criativos e curiosos que vão buscar algo muito mais eficiente do que histórias de sucesso: aprendizagem. Os organizadores afirmam que a ideia maior é mudar mentalidades, desmistificar o conceito do fracasso, cultivar a resiliência e motivar o espírito empreendedor — eles também são adeptos da crença de que o fracasso é meio caminho andado para o sucesso. E aprende-se muito mais com um fracasso do que com 10 episódios de sucesso. A plateia agradece.
Falha nossa
Ok. No mundo do esporte, vencer e perder faz parte. No mundo empresarial, já se aceita que o fracasso pode ser uma oportunidade. Quando muitas portas se fecham, algumas janelas também se abrem. Mas e nós? Pépin também chega ao terreno da psicanálise. Ele define o fracasso também como uma vitória inconsciente, um ato que nos aproxima do que realmente queremos, apesar de não sermos conscientes disso. Lacan concorda e diz que todo ato falho esconde um discurso de sucesso. No seu próximo revés, olhe o que ele trouxe de positivo. Verifique o caminho que ele iluminou. Muitas vezes, temos de fracassar repetidas vezes até nos rendermos e percebermos que estávamos errados, que isso não era o que queríamos realmente para a nossa vida — nem profissional nem afetiva. De fracasso em fracasso vamos nos aproximando pouco a pouco da verdade. Da nossa verdade.
E os outros?
É. Às vezes até lidamos bem com os reveses, difícil é lidar com o julgamento dos outros. Não há outra saída a não ser exercitar a habilidade de lidar com eles. O primeiro passo é — com serenidade — amortecer o impacto do olhar alheio. O grande Millôr Fernandes dizia que há duas coisas que ninguém perdoa: nossas vitórias e nossos fracassos. Vê? Não há saída. Às vezes, é melhor não dar explicações, nem muitos detalhes. A narrativa sobre as nossas vitórias e fracassos são para o nosso círculo privado, para os amigos verdadeiros. O resto deve ser ignorado.
Nunca perca de vista que as pessoas tem valores e perspectivas diferentes dos seus. “Como assim? Você foi despedido depois de anos de uma carreira brilhante como engenheiro e agora decidiu ser florista?” E, infelizmente, não há lugares seguros. A falta de sintonia podem vir também de pessoas próximas. “Ah espera! Casei-me com um advogado brilhante e agora você me diz que quer ser cozinheiro?”.
Não se trata de uma glorificação do fracasso. Há fracassos maléficos. Há quedas que levam meses reerguermos. Mas parte da gravidade vem da nossa incapacidade de aceitá-lo como uma experiência humana normal, como parte do nosso caminho. Decerto, ganhamos muito mais em assimilar o fracasso do que negar a sua existência. O fracasso nos reorienta, traz a capacidade de nos reinventarmos. São as nossas lutas — êxitos e fracassos — que constroem quem somos e fazem a nossa história.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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