A escrita como forma de imaginar, crescer e viajar para dentro de si
Da infância à redescoberta em uma viagem de ônibus, Maysa revela como a escrita resgatou sua alma perdida na rotina da vida adulta.
Maysa faz parte da Comunidade Vida Simples e nos enviou um texto sobre sua relação com a escrita. Essa paixão nasceu ainda na infância, mas a vida adulta e suas obrigações profissionais a afastaram dessa atividade. A vida, no entanto, providenciou uma oportunidade para que esse hábito adormecido pudesse despertar, tudo por causa de um encontro com um viajante inusitado. Confira essa história a seguir.
Imaginar é preciso
Quando era criança, adorava brincar com os papéis que estavam por toda parte da casa. Fazia origami com os rascunhos e acreditava que o furador era máquina de fazer confete para brincar de chuva de papel, pintava com caneta os dentes das modelos da revista e fazia recortes de jornal para os trabalhos da escola.
Aos domingos, meu pai comprava o jornal da cidade, que era recheado com um mini jornal “Diarinho” – destinado ao público infantil. Eu esperava ansiosa para ler os quadrinhos e os curiosos anúncios das crianças buscando amigos por correspondência, divulgando datas e locais para trocar figurinhas e fotos de cantores famosos.
Certa vez, decidi participar de um projeto cultural anunciado no Diarinho. No auge dos meus onze anos escrevi um poema chamado “A Terra pede socorro” e enviei por carta ao jornal. A Terra estava pedindo socorro de dentro de uma panela de pressão e o grande medo era que acontecesse uma explosão. Sim, eu consegui fazer uma prosopopeia e ouvir o pedido de socorro do planeta Terra.
O poema foi selecionado, publicado e eu pude desfrutar de uma tarde incrível com outros escritores mirins numa Playland de um shopping da região. Achei esse negócio de escrever muito bom, então eu queria ser escritora.
Crescer é preciso
Na adolescência, escrevia rimas e poesias, carta para amiga distante e adorava a semana da correspondência na escola. Vivia e morria por amores platônicos. Crescendo um pouco mais, depois de muito argumentar comigo mesma, encontrei uma lógica para evitar entrar em contato com os sentimentos. Me convenci que escrever era bobagem, então guardei os meus rabiscos e cadernos numa caixa de papelão no alto do armário do quarto.
Lá pelos meus vinte anos, formada na faculdade de Direito, estava decidida a me tornar uma boa profissional. A escrita era apenas para os e-mails, contratos, papéis com valor econômico e nenhum valor sentimental. Já pelos meus trinta anos, percebi que ganhei o mundo “Maysa S.A.”, mas a alma nem sabia para onde voltar.
Se as palavras pudessem se manifestar, elas gritariam comigo todas as vezes que eu finalizava um e-mail com a palavra “Atenciosamente”. No piloto automático da digitação, o que mais me faltava era atenção.
Viajar é preciso
Aquela Maysa que lia o Diarinho e brincava de chuva de papel facilmente reconheceria que eu estava numa panela de pressão. Ela também não se surpreenderia ao saber que de fato houve uma explosão – daquelas que esparramam “feito batatinha pelo chão”.
Eu me sentia sobrecarregada pelas escolhas que fiz. Por anos, tentei separar a cabeça do corpo e separar a vida de segunda à sexta-feira do final de semana. Nessas tentativas de fuga, ao menos uma delas foi bem sucedida.
Um dia estava retornando de uma viagem do Rio de Janeiro para São Paulo e um homem sentou-se ao meu lado na poltrona do ônibus. Cada um com seu livro em mãos para fazer companhia nas seis horas de viagem. Dizem por aí que a curiosidade matou o gato, mas penso que pelo menos ele não morreu sem arriscar viver. Começamos a conversar e, para minha surpresa, aquele homem não era apenas um leitor. Era um escritor.
Escrever é preciso
Durante as horas de viagem na estrada, ele me contou sobre a sua trajetória, a origem dos seus personagens dos livros infantis e rimos imaginando os nomes e dilemas dos passageiros ao nosso redor. Confessei que eu gostava muito de escrever. Só ocultei que há anos havia guardado meus escritos junto com as minhas emoções numa caixa de papelão no fundo do armário.
Depois deste encontro, eu reabri a caixa e voltei a escrever com mais frequência. Até a minha alma voltar para a cadência certa para escrever com a imaginação da criança de onze anos, a paixão da juventude, a tecnicidade de uma advogada e a liberdade que só a poesia admite.
Reaprendi a escrever para viver as emoções e registrar os detalhes dessa incrível viagem. Também aumentei o meu estoque de coragem, pois ler tudo o que despejo no papel exige maturidade.
Escrever, afinal, é como uma longa viagem, só que para o lado de dentro.
Maysa Buratto Carrenho (@carteiro.da.alma) é advogada, curiosa, leitora e escritora de cartas destinadas à alma.
Este texto foi produzido por um membro assinante da Comunidade Vida Simples e publicado no blog Você + Simples.
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