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Saiba criar limites e respeito para uma relação saudável em família
Existe uma ideia um pouco romanceada de que a família é um lugar de acolhimento, afeto, compreensão e amor...
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“Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” Assim começa o romance Anna Kariênina, de Liev Tolstói, centrado na história de um relacio­namento extraconjugal.

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Mas o ponto nevrál­gico da trama poderia ser outro, tantas são as agruras originadas nos núcleos familiares. Afinal, cá entre nós, cada residência abriga sua cota de mazelas.

Existe uma lei, emprestada da física, que se ajustou bem ao comportamento humano: “Onde há convivência, há atrito”. E onde nos deparamos com os conflitos mais viscerais de que se tem notícia? No grupo familiar, claro.

Viver nesse grau de intimidade é, por um lado, reconfortante. Sentimos que elos profundos nos sustêm. Porém, estar perto demais implica testar a coexistência aleatória de gerações, personalidades, gostos e manias as mais distintas e, não raro, incompatíveis. Fácil não é.

Em alguns casos, esse caldeirão é perigo­samente explosivo. Transborda o limite do aceitável e contamina o entorno com com­portamentos abusivos, gerando traumas e feridas difíceis de cicatrizar.

Nenhuma família é perfeita; mas há limites

Nessa hora, per­cebemos como a família está fundada na ambiguidade: teoricamente é o nosso porto de chegada nesse mundão, o lugar que deveria nos acolher e proteger até a nossa maiorida­de.

Entretanto, não raro, ele se revela uma incubadora de críticas destrutivas, competi­ção e até maus-tratos.
Para amortecer uma realidade áspera como essa, muitas vezes relativizamos: “É assim mesmo. Toda família tem seus problemas”.

Sabemos que não existe parentesco perfeito. Mas a partir de que momento a imperfeição se torna abuso? Como a gente pode identificar esse limiar? Recorrendo a algumas balizas.

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Famílias precisam satisfazer necessidades emocionais

Coordenadora e docente do Instituto de Terapia Familiar de São Paulo (ITFSP), a Dra. Simone Bambini Negozio explica que não basta a família assegurar necessidades básicas, como alimentação, educação, saúde etc. Ela também precisa suprir necessidades emocionais.

O psicólogo americano Jeffrey Young destaca cinco delas: pertencimento, autonomia, expressão e validação emocional, limites realistas, espontaneidade e lazer.

Seria ingênuo esperar que os cuidadores atendam a cada um desses critérios com lou­vor. Alguma coisa sempre ficará faltando.

E tudo bem. “Inclusive, não ter algumas necessidades bem supridas pode impul­sionar a busca delas em outras relações”, pondera Simone.

Crucial é atentar para as consequências do que está sendo despre­zado. “Existem famílias que negligenciam o suprimento de uma ou mais necessida­des, gerando sofrimento pessoal, prejuízo nas relações, sintomas e dificuldades no desenvolvimento das crianças e adolescen­tes”, alerta a docente.

Quando desrespeito e violência estão enraizados na família

Relações familiares Mas a verdade é que muitas vezes esse núcleo é fonte de violências, abusos e faltas afetivas

Não existe família desequilibrada, porque o oposto também é uma quimera. Essa pro­posição parte da psicóloga clínica Myrna Coelho, que desmistifica o tema com a fir­meza de quem dispensa o anteparo das ilu­sões e das fantasias.

“Nossa cultura idealiza a família como um lugar de amor, afeto, aco­lhimento. E, de fato, ela não é isso”, dispara.

Um segundo para tomarmos fôlego. Segui­mos. “Normalmente, a família é um lugar de muita violência. E nós não conseguimos nomear isso por causa de um tabu cultural. Acontece que as famílias se equilibram nas relações de poder e violência, assim como todas as relações que a gente tem na vida”, alega a psicóloga.

Uma ressalva importan­te: essa violência também está em nós, em­bora seja mais fácil enxergá-la nos outros. Em algumas situações, analisa Myrna, as famílias, que já são violentas, se tornam ainda mais, tornando-se abusivas.

“Esse limiar é difícil de se identificar porque é dado por cada um. Só na conexão profunda com a gente mesma conseguimos identificar quando estamos sendo desrespeitados”, ela coloca.

Grave esta palavra: desrespeito. Ela é o alarme fundamental para se posicionar em relações destrutivas, uma vez que não devemos permanecer em dinâmicas que nos desconsideram. “Se isso ocorre, temos de nos retirar, não importa se é um laço familiar”, defende.

Relações familiares podem ser interrompidas

A família está cercada de zonas “impró­prias”. Outra polêmica é a escolha pelo rompimento. “Atrevimento imperdoável”; “Quanta imaturidade!”; “Isso é rancor, sentimento mal resolvido”.

Myrna, entre­tanto, o toma como uma possibilidade de emancipação, autonomia e autocuidado. Para ela, é preciso desmontar o argumen­to de que as relações familiares têm de ser mantidas a qualquer custo.

“Entendo que o rompimento, quando se está numa situação de ser desrespeitado, é um ca­minho digno e que pode ser seguido com tranquilidade”, afirma.

Simone também é favorável à medida. “Situações de abuso e violência tendem a se manter e aumentar, por isso essas ações precisam ser imedia­tas e potentes”, alerta.

É importante entender que, por vezes, os papéis familiares se invertem; ou seja, quem deveria receber acaba dando, e vice-versa. E aí a fonte de sofrimento também é grande.

“O pequeno recebe e o grande dá. Só que isso geralmente não acontece, por­que os pais acabam, de maneira inconscien­te, cobrando dos filhos algo que eles não receberam dos próprios pais. É uma bola de neve que vai se perpetuando”, descreve Carla Bologna Wanderley, psicoterapeuta e consteladora sistêmica.

Sem a tomada de consciência, fica difícil quebrar essa repetição e fazer diferente para poupar as próximas gerações.

Autorrespeito é 1º passo para relações familiares saudáveis

Pela falta de clareza, patologias acabam sendo naturalizadas ou tidas como gestos bem intencionados para a evolução dos mais novos, quando o que se está causando é uma ferida tremenda.

“Assim eles passam a atrelar amor a abuso, porque desconhe­cem outra realidade, somente seu meio fa­miliar”, salienta Carla.

Há que se ter compreensão do plano maior. Com autoconhecimento, amor por si e autocuidado, a gente começa a interrom­per os danos gerados pelas fricções fami­liares.

“Por mais dolorido que seja, é vital o adulto acessar a dor da criança ferida para ela ser curada”, incentiva a consteladora.

Quanto mais nos fortalecermos a partir do resgate de nós mesmos e da capacidade de nos respeitarmos, antes de qualquer coisa, maior será o discernimento para decidir se é o caso de se afastar, se proteger com limi­tes ou até perdoar. É pedir demais?

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A saga do perdão consigo e em família

Relações familiares É essencial reconhecer desrespeitos e criar limites saudáveis para a relação

“A compaixão por quem nos feriu é deseja­da, mas nem sempre possível. Mais impor­tante do que perdoar a pessoa é diminuir a valência emocional que as memórias de abuso têm em nossa vida”, propõe Simone.

Não há atalhos nessa estrada, muito menos protocolos. Cada um que se dispuser a per­correr a trilha do perdão vai ter que des­cobrir os próprios métodos e ingredientes, sem forçar a mão para limpar o peito antes da hora.

“Gosto da ideia de que perdoar é deixar de ressoar o que nos fez mal. Mas o perdão só vem como experiência final de ressignificação da história vivida. Re­conhecer as dores e nomeá-las é princípio sine qua non para repará-las. E isso não de­pende do outro”, lembra Myrna.

As constelações sistêmicas, por sua vez, preferem o verbo aceitar. “A aceitação do que pôde ser nos tira da revolta para que possamos seguir pela vida mais livres”, diz Carla. Em suma: eles não puderam fazer diferente, nós também não. Assim foi.

Mas não precisa continuar sendo. Isso não significa se resignar. As duas ações são bem diferentes, pois, enquanto a aceitação gera movimento, transformação, a resignação nos paralisa.

Relações saudáveis em família podem ser praticadas aqui e agora

Você deve estar se perguntando: Afinal, uma família saudável, na qual haja espaço para sentimentos, diferenças, estranhamentos e reparações circularem dentro das bordas do respeito, seria uma utopia?

De jeito nenhum. Sobretudo se estivermos a par de nossos limites, valores e desejos. Que o diga o jornalista Andrew Solomon, autor de Longe da Árvore: Pais, Filhos e a Busca de Identidade (Companhia das Le­tras).

A obra, que investiga o desencontro entre as expectativas dos progenitores e a verdade de seus rebentos (divergen­tes dos padrões familiares, linguísticos e sociais predeterminados), inspirou o documentário homônimo.

Nele Solomon partilha a dor de ter sido rejeitado pelos pais depois de se assumir homossexual na juventude e a jornada para compreender esse cataclisma familiar.

Seus pais que, até então, o cobriam com carinho, de repente foram incapazes de disfarçar o desapontamento e a vergonha.

“Foi uma catástrofe”, define. Ele bem que tentou se “ajustar”. Evidentemente, em vão. Precisava ser quem era; por isso, decidiu se afastar.

Para alguém com tendência à depressão, tema por ele detalhado em O Demônio do Meio-Dia (Companhia das Letras), dá para imaginar a dimensão do golpe.

Limite que gera respeito, respeito que gera saúde

Entretanto, o jornalista compôs a própria história, publicou livros, se casou, teve filhos, formou sua família (segundo ele, motivo de grande realização).

Na festa de seu casamento, assistimos a seu pai, idoso, abençoar perante os convidados o amor do filho por outro homem. Nem sempre a redenção chega. Para Solomon, ela chegou. E, ainda por cima, embalada com fita.

É essencial reconhecer desrespeitos e criar limites saudáveis para a relação

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RAPHAELA DE CAMPOS MELLO é jornalista e está aprendendo a abrir e a fechar as comportas familiares.


Conteúdo publicado originalmente na Edição 243 da Vida Simples

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