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Inverno é estação de recolhimento, e também fogueira e festejos
ILUSTRAÇÃO: TIAGO GOUVEA • @TGOUVEA A queda da temperatura indica a chegada do inverno, que pode ser vivenciado de maneira diferente em cada região do país
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Psiu. É hora de falar baixo. Afinal, não quere­mos atrapalhar o sono dos animais, que, gro­gues de preguiça, hibernam em suas tocas. “Agora é inverno/ e no mundo uma só cor/ o som do vento”, pincelou o japonês Bashô (1644-1694), grande mestre do haikai, esti­lo de poema miúdo, mas potente o bastante para apreender a essência de algo. No caso, os 90 dias mais densos do ano.

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Ouçamos, então, o vento levando o frio para lá e para cá, agitando o manto cinza que, de repente, se deitou sobre a paisagem.

Calafrios, lã rente à pele, fumaça perfumada de chá, dormir até se encostar nas profundezas da noite. Do lado de fora a natureza descansa para se dar a chance de, em breve, ressurgir viçosa.

Porta adentro, também podemos ajeitar um casulo macio e quentinho. Um lugar onde será possível repas­sar cada pequena dobra de vida desejosa da nossa atenção. E ainda devanear longamente e sem culpa. Se não agora, quando?

Neste ciclo, as energias escorrem para o breu da terra. Longe das vistas, as sementes enraízam, quietas. A seu tempo. Sem alarde. Veja que permissão estupenda para fazermos o mesmo.

Um retorno para o interior de nós

“O inverno nos convida a aprender a escutar o silêncio, a agir com calma, a escu­tar a alma, a sonhar e cultivar um diálogo com os sonhos, a nutrir a vida interior”, propõe a analista junguiana Elisabete Lepera.

Em diversas narrativas ancestrais, encon­tramos histórias de ritos, práticas e iniciações próprias de cada estação. Podemos invocá-las como guias, para que nos ajudem a percorrer a jornada que teremos pela frente.

Acredite, elas nunca nos dão as costas. Embarcando na roda do tempo com os povos tupi-guarani, vamos descobrir, por exemplo, que, ao longo de cente­nas de anos, eles polvilharam a costa litorânea do sudeste e do sul do Brasil com sementes de araucária.

“Hoje são árvores gigantes que compõem paisagens belíssimas e que susten­tam um bioma importantíssimo. Delas nasce o pinhão, fonte de muita energia, que permitia a sobrevivência desses povos em períodos de frio e seca”, recorda Elisabete.

Até hoje se co­memora no inverno a festa do pinhão. Muitos sequer imaginam, mas, inconscientemente, es­tão reverenciando um alimento sagrado.

O inverno dos trópicos tem sabor ancestral

Para saber se estava na hora de se prepara­rem para o frio, os guarani, grandes estudio­sos dos astros, se fiavam pela constelação da Ema.

O tracejado das estrelas indicava a chegada de ventos pontiagudos como fle­chas, bem como da seca. “As decisões da co­munidade baseiam-se no conhecimento das constelações celestes, das fases da lua, do início de cada estação. Para assim poderem plan­tar e colher, saber do fluxo das águas, da pesca, dos tempos de migrar. Tudo em com­pleta sintonia com os ciclos da terra, com o grande ecossistema”, detalha a analista.

É por isso que o solstício de inverno, a noi­te mais longa do ano, concentra, até hoje, tanto apelo simbólico. Nele comemoramos as festas juninas com suas fogueiras, qua­drilhas e quitutes.

A herança portuguesa católica vivifica São João, associado ao sím­bolo da fogueira; São Pedro, à anunciação; Santo Antônio, ao matrimônio.

Por parte da nossa ancestralidade indígena, honramos as colheitas de milho e amendoim preparando receitas típicas. Pamonha, curau, paçoca.

A importância do fogo no inverno

inverno O inverno traz a simbologia de se recolher e agir com calma; na natureza, as sementes enraízam, silenciosas

Junto às labaredas, inalamos forças vitais. “A fogueira como símbolo central das cele­brações se refere ao ritual sagrado do fogo que aquece, ilumina, transformando e pu­rificando modos de ser ultrapassados para que haja renascimento. Das brasas às cinzas para que a vida nova emerja totalmente pu­rificada”, interpreta Elisabete.

O calor emanado das chamas atrai. Quere­mos chegar mais perto. Compartilhar a ba­tata doce assada ali mesmo, no espeto. De repente, dá uma vontade de cantar: “Pula a fogueira…”. Alguém dá o tom, e o coro, ligeirinho, engrossa.

É tão bom se sentir pertencente. “A roda de cantos e danças em torno da fogueira remonta aos ritos de co­memoração e celebração da roda da vida. Também é o momento de contar histórias para curar feridas, ofertar iniciações, falar de medos, de vitórias, de gratidão pela mãe terra. A comunidade se une e aquece com seus saberes e folguedos as raízes ances­trais”, vislumbra a analista.

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Frio combina com solitude

Mas há quem prefira se ausentar dos festejos, pois a vontade maior é a de se aninhar para desfrutar da solitude invernal. Se é assim, vai um chazinho?

Chás e infusões fu­megantes acalantam as temporadas em que buscamos nossa própria companhia nos dias e nas noites geladas. Estar consigo mes­mo nesses termos, inclusive, nos devolve ao nosso centro. Não à toa, no Japão existe um ritual: a Cerimônia do Chá – Chanoyu, em japonês.

Em linhas gerais, a pessoa é convi­dada a apreciar o ambiente, a decoração, os utensílios e as xícaras onde o “matcha”, um chá verde pulverizado, é servido. Na etapa seguinte, deve sorvê-lo em três goles.

Durante todo o processo, a beleza da sim­plicidade e a harmonia do mundo natural banham a alma dos participantes.

“No ca­minho do Zen, procuramos manter corpo e mente no presente, em cada ação que praticamos, então a Cerimônia do Chá é mais uma oportunidade de manifestar esse estado desperto”, justifica a monja Waho.

A filosofia Zen imprime essa qualidade de atenção ao simples ato de se beber chá, por exemplo, pois está interessada em salien­tar as sutilezas de cada instante.

Nós também mudamos com as estações do ano

Ah, como isso nos toca, justamente por ser o avesso do que o mundo contemporâneo espera de nós. Por um momento que seja, podemos sublimar o pragmatismo da exterioridade e nos sintonizar com um jeito mais delicado de conduzir nossos gestos. Com a entrada e saída das estações, é a mesma coisa.

“Principalmente em nossa prática medi­tativa, temos uma oportunidade de perce­ber que somos a natureza, somos a vida da Terra. Portanto, vivenciamos as estações do ano e mudamos com elas”, explica Waho.

Na cerimônia de casamento budista, ela conta, há o momento em que os noivos brindam nas taças nupciais. A terceira taça representa a ameixeira.

Faz todo o sentido, porque, no inverno, a árvore parece mor­ta: só galhos secos, nenhuma flor. Mas logo ela floresce outra vez, bela e delicada.

“Que possamos atravessar os períodos de dificul­dades e perdas e, como a ameixeira, desa­brochar em seguida, conscientes da transi­toriedade da vida”, roga a monja.

Práticas ancestrais de meditação e aquecimento para o inverno

inverno Esta época, mesmo mais introspectiva, também nos envolve em celebrações juninas que anunciam: a vida segue pulsando

Receber as estações do ano com consciên­cia é como se ajustar ao ritmo que passa a dominar a pista de dança. No verão, o ape­tite mingua, logo come-se menos e de for­ma mais frugal; no inverno, a fome ressurge com tudo; então, aumenta-se a ingestão ca­lórica, como também as fontes de calor, tais como sopas, caldos e chás.

É preciso ainda se agasalhar, se abrigar, manter a casa aque­cida. Enfim, redobrar os cuidados nesse sentido, como ensinam os antigos mestres.

“Na época de Xaquiamuni Buda, os mon­ges viviam na floresta, não em mosteiros ou templos, pois eram peregrinos. Com o tempo, ao vivenciar os rígidos invernos da Índia, Buda decidiu por instituir, nessa época do ano, um período de prática inten­siva de três meses chamada Angô. A prática seria feita em abrigos protegidos para cuidar da saúde da Sanga (comunidade), buscando essa harmonia com a vida”, conta a monja.

Até hoje, todos os mosteiros de treinamen­to monástico realizam Angôs anuais. Buda sabia o que estava fazendo.
A Ayurveda, milenar medicina indiana, preconiza os mesmos cuidados. Jamais se expor à friagem de peito aberto.

Jamais! Esse saber ancestral nos orienta a evitar alimentos e situações que nos esfriem ainda mais. A recomendação clássica é a oleação com óleo morno de gergelim, aquecido em banho-maria, prática de autocuidado cha­mada Abhyanga.

“Ela ajuda a aquecer e a nutrir o corpo. É fundamental que o óleo to­que a pele quentinha e continue quentinho. Então, depois da aplicação, é preciso se agasalhar para não deixar que a temperatura ambiente o esfrie. Também deve-se evitar sair e pegar friagem”, recomenda Matheus Macedo, primeiro especialista de Ayurveda do Brasil e colunista do portal Vida Simples.

Outras técnicas ayurvédicas para se aquecer no frio

Não há problema, segundo esse saber, de recorrermos a pratos mais gordurosos e pe­sados durante a invernada. O sabor picante também é bastante recomendado. Na hora do chá, o gengibre é excelente para aquecer e acalentar.

É que, nos meses de maior frio, nosso corpo acumula energia, e a nossa ca­pacidade digestiva vai a mil. “Costumamos associar o inverno a uma situação um pouco mais tristonha, à falta de vitamina D etc. Mas a Ayurveda, é bom lembrar, foi desenvolvida numa região intertropical, então para o Bra­sil funciona muito bem”, esclarece Matheus.

O que fazer com tanta energia acumula­da se da janela avistamos um mundo re­traído? Pois a vida segue pulsando.

“Por mais que a pessoa esteja com disposição e apetite, o meio está mais inóspito, a gente fica mais em casa, com os nossos. Pode­mos aproveitar para nos relacionar me­lhor com a família, para sentir o prazer da lareira”, sugere o especialista.

De Berlim, onde se encontra, ele envia uma ótima ideia: “Aqui é muito comum as pessoas irem guardando coisas para resolverem no inverno. Por exemplo, lavar cortinas, costurar coisas”. Eu pretendo reduzir a pi­lha de livros intocados. E você?

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RAPHAELA DE CAMPOS MELLO é jornalista e não troca as leituras de inverno, debaixo do cobertor, por nada nesse mundo.


Conteúdo publicado originalmente na Edição 244 da Vida Simples

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