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O poder da música para o coração
Nada Hanifah | Unsplash
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O diretor de cinema Wong Kar-Wai era criança quando sua família, fugindo da violenta “Revolução Cultural” chinesa, se estabeleceu em Hong Kong, então colônia britânica. O novo lar, na febril década de 1960, era cosmopolita, vibrante, um amálgama de novas cores e melodias para aquele menino cheio de imaginação.

Nas rádios, as canções locais se misturavam com a música popular de diversos países – um reflexo do mosaico humano que habitava as ruas e os cafés. “A primeira coisa que me impressionou foram os sons, totalmente diferentes dos que eu conhecia em Xangai”, ele diria em uma entrevista. Já no ano 2000, o homem maduro voltou àqueles ambientes e ao que de mais doce e diverso invadia seus ouvidos ao lançar Amor à Flor da Pele – eleito o melhor filme estrangeiro do ano pela associação dos críticos de cinema dos Estados Unidos (no Brasil, dá para assisti-lo pela plataforma Mubi).

Esse romance, que se passa justamente em Hong Kong, em 1962, trata de vizinhos, um homem e uma mulher, que descobrem que a esposa dele e o marido dela estão tendo um caso. Então, aprendendo juntos a superar essa dor, os dois acabam se apaixonando. Mas não se permitem dar espaço a esse sentimento, aprisionados por uma tradição chinesa de pudor e desejos reprimidos.

Se essa história de atração correspondida, mas não consumada, tornou-se um clássico do cinema contemporâneo, seu prestígio deve demais aos sons encantadores que Wong Kar-Wai resgatou de sua meninice. Além de canções latinas interpretadas pelo americano Nat King Cole (“Aquellos Ojos Verdes”, “Quizás, Quizás, Quizás”), a música-tema (escute pelo YouTube) é uma valsa que entrelaça sensações diferentes ao comentar as cenas que unem e separam os protagonistas.

Sua melodia, em forma de solo de violino, é sensual, remete ao desejo “à flor da pele” que arrepia o braço e aperta o coração, na torcida para que o casal fique junto. Mas essa é a mesma música que nos desalenta: outras cordas, no acompanhamento harmônico, ditam um ritmo lento, hesitante, e a sensação de que tudo permanece em estado de suspensão, que nada evoluirá.

No cinema, a música revela todo o seu poder sinestésico e de moldar as nossas emoções. E ali nada é por acaso. Existem fórmulas de composição específicas para induzir determinadas sensações no ouvinte. “Métodos composicionais para despertar emoções definidas vêm dos estudos que aconteceram principalmente no período barroco, contemplados no que os alemães chamaram de Doutrina dos Afetos. Foram muito usados no desenvolvimento da ópera, que é um gênero marcado pela expressividade”, explica o maestro Ricardo Carvalho, regente de corais e professor de música.

“Essa engenhosidade surgiu baseada no fato de que o ser humano gosta de identificação. Quando ouve uma música que identifica com as emoções que está sentindo, você se sente acolhido. E aí você pode abrir um sorriso ou chorar.”

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É prazer, conforto, cura

Esse poder, no canto coral de que o maestro Ricardo é especialista, já está confirmado pela ciência. O neurocientista australiano Alan Harvey conta, em um Tedx Talks, que os níveis de ocitocina na corrente sanguínea ficam elevados quando pessoas cantam juntas. E ocitocina é o hormônio associado à empatia, confiança e construção de relacionamentos.

Alan ainda lembra que o envolvimento em uma atividade musical reduz os níveis de estresse e nossa sensibilidade à dor. “A música ativa o centro de recompensa do nosso cérebro, a mesma região que é estimulada por atividades que nos dão prazer, como sexo e chocolate.”

Mas, se a música é um caminho que buscamos para sentir prazer, por que também gostamos de baladas tristes? A música mais tocada nas rádios em todos os tempos é “Yesterday”, dos Beatles. Nela, Paul McCartney se lamenta pelas coisas não serem mais tão boas como eram em um passado idílico.

A pesquisadora australiana Sandra Garrido, que tem pós-doutorado em História das Emoções, explica que as canções melancólicas nos ajudam a reconhecer nossos sentimentos, a refletir sobre o que está dando errado em nossas vidas e a desenvolver estratégias para lidar melhor com os problemas. Além disso, uma música triste cria vínculos com o artista e sua mensagem, o que nos traz conforto. “Sentimos que não estamos sozinhos em nossa tristeza, há quem entenda o nosso sentimento.”

Música, então, pode ser uma terapia? A paulistana Camila Brioli tem certeza de que sim. Sua memória mais antiga é a de estar numa sala cirúrgica, aos 4 anos. Foi quando operaram seu coração e, por um mês, ela ficou sem sair da cama, sem poder se mexer. A tristeza daquela criança só cedeu quando uma tia lhe deu um toca-fitas.

“Passei a ouvir fita cassete o dia inteiro, e aquilo me fazia esquecer a dor, superar o tédio, foi o que me salvou.”

A evidência do uso curativo das canções foi tão forte que hoje Camila é musicoterapeuta. Por uma história que começou a ser escrita na infância e continua em sua trajetória profissional, ela sente que foi ajudada e agora tenta ajudar pessoas com esse mesmo bálsamo. “Podemos usar a música para intensificar o que estamos sentindo ou para mudar nosso estado de humor.”

A experiência musical, então, pode ser terapia e autoestímulo, uma catarse ou a condutora de um momento de intimidade com seu próprio eu. Pode ser o espelho da nossa fragilidade ou a certeza do quanto somos capazes.

Talvez seja por isso que o escritor e naturalista americano Henry David Thoreau (1817 – 1862), que dedicou seus estudos a descobrir as necessidades essenciais da vida, não teve dúvida quanto ao que não poderia faltar nessa lista. “Quando ouço música, não tenho medo do perigo. Me torno invulnerável. Me sinto conectado com os mais antigos dos tempos, e também com os mais novos.”

Da próxima vez que colocar uma canção para tocar, repare como ela, além de chegar aos ouvidos, balança o seu coração – e pode transformar o seu dia.

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