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Aprenda com seus medos
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Toda vez que estou diante da porta, respiro fundo antes de apertar o botão. Meto o dedo bem rápido, totalmente a contragosto, como uma criança que tem que engolir a última garfada de arroz com feijão, e fico olhando, pelo pequeno visor luminoso, os números dos andares mudarem rápido enquanto aquela caixa retangular se aproxima de mim. A tensão vai aumentando, até que ela chega e eu preciso entrar. Sempre que há alguém, fico mais tranquilo. Quando está vazio, meus batimentos cardíacos gritam. Entro e permaneço imóvel até que aquela espécie de antessala do purgatório (disposta a sempre me levar ao inferno) chegue ao meu andar de destino. No curto trajeto, apuro os ouvidos para tentar perceber qualquer ruído diferente.

Quando vejo que é o Lairton que está na portaria, respiro mais aliviado. Eu sei que ele ignora os procedimentos de segurança passados pelo pessoal da assistência técnica e endossados pela síndica. Se a máquina parar, ele me tira dali. Eu sei, ele prometeu: conversamos inúmeras vezes sobre isso. Dou bom-dia, ele vem com o jornal, e eu levo embaixo do braço, apertando bem forte, apreensivo, antes de subir – eu sempre o uso para isso, afinal é difícil encarar 12 andares acima.

Descer, quase sempre é nas pernas, porque daí todo santo ajuda. Pra subir, quem tem que me amparar é meu anjo da guarda. Ele bem sabe do pânico que eu tenho de ficar preso, apelo para ele todos os dias. E, entre subidas – mais frequentemente – e descidas, encaro o elevador apesar da minha claustrofobia, ou a aversão ao confinamento, de ficar preso em um espaço pequeno e limitado.

Entendendo o medo

Crédito:SIphotography | iStock

Medo é ruim e ninguém gosta de sentir, mas é um instinto que se instaurou no nosso cérebro há milhares de anos e, por isso, é algo com que temos que aprender a conviver. A ciência comportamental determina que esse sentimento é uma reação instintiva de proteção frente a uma ameaça. Ele pode nos levar a reagir de maneiras muito diversas. Tanto construtivas quanto destrutivas.

A partir dele, podemos ter coragem para atacar ou fugir. Proteger ou destruir. “O medo existe para nos dar conforto frente a um mundo que pode ter características ameaçadoras”, afirma Luís Fernando Tófoli, professor de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp. Mais do que um instinto, nos seres humanos o medo estabeleceu reações de comportamentos mais complexas, a partir da nossa capacidade de imaginar o futuro, de simular acontecimentos e reconhecer a finitude da existência. Demos, nas nossas mentes, um peso maior a ele.

“O medo, que é um sentimento primal, ganhou valores simbólicos e explicações. Ele pode ser, portanto, um motor poderoso para nosso autoconhecimento”, defende Tófoli. “Primeiro, porque nos obriga a olhar o desagradável, a buscar cuidados”, diz. Não é à toa que o transtorno que mais leva pessoas ao atendimento médico é justamente o do pânico, a manifestação mais aguda e intensa de um medo.

“A segunda razão é que a forma como cada um vivencia esse sentimento diz muito de sua própria história de vida, e dos pontos que precisa buscar transformar e viver melhor. Nesse sentido, reconhecer a existência dessas fobias e ter a chance de olhá-las de frente pode ser o primeiro passo para transformá-las em algo que se pode superar, ou simplesmente conviver.”

Você precisa ter medo

De acordo com Tófoli, a fobia que cada um desenvolve traduz parte do seu universo interno. Medos não caem do céu aleatoriamente e escolhem um ou outro para se instalar. O pavor de cachorro, por exemplo, pode surgir por diversas razões, desde associações com eventos ligados à vida da pessoa (o ataque por um cão bravo na infância) até enigmas mais profundos e inconscientes, desvendados apenas com uma psicoterapia. “Porém, o principal é cada um se perguntar: ‘Por que eu tenho medo disso? Por que essa coisa me paralisa?’ Essas questões podem ser o ponto de partida para você se entender melhor”, afirma o especialista.

A escritora americana Elizabeth Gilbert, famosa pela jornada que a levou a escrever o livro Comer, Rezar, Amar (Objetiva), foi uma criança muito medrosa, apavorada. Tinha todos os receios comuns dessa fase da vida (de escuro, de nadar no fundão da piscina, de pessoas desconhecidas na rua) e mais outros que foi colecionando no decorrer dos primeiros anos. “Eu era uma criatura sensível e facilmente traumatizável, me debulhava em lágrimas com qualquer perturbação em meu campo de força”, relata em sua obra mais recente Grande Magia: Vida Criativa sem Medo (Objetiva), na qual relata histórias de pessoas que decidiram enfrentar seus demônios internos em prol de uma vida mais criativa.

Elizabeth era impulsionada pela mãe a se portar diante dos temores. “Ela tinha um plano para acabar com meu medo que era quase cômico de tão simples: sempre me forçava a fazer o que eu mais temia. Por mais que no princípio tenha relutado todas as vezes, chorando e tremendo, na adolescência percebi que aquela batalha que eu estava travando era muito estranha, a de defender minha própria fraqueza”, conta.

Evoluir com coragem

Foi quando ela finalmente percebeu que seu medo instaurado era muito chato e não a estava levando a lugar algum. “Percebi que meu medo não tinha nenhuma variedade, nenhuma profundidade, nenhuma substância. Era uma música de uma nota só, me dizendo sempre: ‘Pare!’”, diz. Como, aliás, é o medo de todo mundo. O volume muda, o ritmo também, mas a música sempre soa igual. “Você não ganha nenhum crédito especial por saber como ter medo do desconhecido.” 

Ela se deu conta de que era preciso ir além de seus sentimentos aterrorizantes. E que a coragem seria o caminho para mudar, evoluir, diferenciar-se. “Coragem significa fazer algo que nos causa medo. Não é ser destemido, que é não saber o que a palavra medo significa: é ir lá e fazer apesar dele”, diz a escritora.

Elizabeth Gilbert ouviu muitas histórias para compor sua obra, de amigas próximas a desconhecidos, e chegou à conclusão que o temor precisa ter espaço na nossa vida caso queiramos ter uma existência mais criativa. No senso comum, criatividade e medo seriam tão antagônicos quanto os jedi e os sith. Afinal, a criatividade reside na área dos resultados incertos, algo inaceitável para o medo.

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