A porção de infância que nos habita
Um resgate à criança que um dia fomos pode revelar capítulos da nossa história e ajudar na construção da narrativa cheia de sentidos que queremos contar sobre nós mesmos
Um resgate à criança que um dia fomos pode revelar capítulos da nossa história. Pode, também, ajudar na construção da narrativa cheia de sentidos que queremos contar sobre nós mesmos
A partir de 1987 eu existia. Minha infância foi compartilhada com dois irmãos. Filha do meio, precisei aprender a ocupar essa posição tantas vezes apertada, mas incrível de ser entre. Minha mãe conta que um dia, depois de me dar banho e me trocar, foi fazer o mesmo ainda com os outros dois, como de costume. Quando acabou a tarefa, chamava, chamava por mim, e nada. Eu ouvia, mas não respondia. Estava brincando de me esconder. Uma foto registra essa história, e a minha carinha, sério, é impagável.
Tenho disciplina rigorosa em não deixar que essa criança que um dia fui se esconda de modo definitivo, fuja ou seja esquecida. Sigo à risca a missão de mantê-la por perto. Ainda semana passada fui criança. Enquanto escolhia os tomates na feira, ao sentir o sol fazer festa em mim depois de um período de frio chuvoso ou quando corri ao encontro dele, me jogando num abraço gostoso. Os dias pedem a espontaneidade da graça de criança. A gente precisa cuidar desse espaço de afeto, a porção de infância que nos cabe. É urgente.
O cantor canadense Leonard Cohen também escreveu livros; em A Brincadeira Favorita (Cosac Naify), ele alerta que, “conforme os olhos vão se acostumando a ver, blindam-se contra a fantasia”. A brutalidade da “adulteza”, essa força impositiva que torna tudo tão banalmente comum. Contra isso, fica aqui o meu manifesto em defesa das coisas (extra)ordinárias e como é importante recuperar e conversar com a criança que ainda nos habita para evitar o desastre iminente de uma vida feita só de realidade.
Redescubra o tempo das coisas
Mas, “para resgatar a criança que um dia fomos, precisamos primeiro tê-la perdido”, chama a minha atenção o filósofo e educador Gabriel Limaverde. Ele faz parte da equipe de Educação e Cultura da Infância no Alana, organização que busca a garantia de condições para a vivência plena da infância. É que eu estava tentando pensar a infância mais como um modo de ser e estar no mundo do que uma fase ou idade, e ele me ajudou a entender esse paradigma de temporalidade recuperando as raízes gregas das palavras usadas para designar o que hoje chamamos de “tempo”, chrónos e aión: “No nosso tempo de adulto, de relógios e agendas, contado cronologicamente de forma ordenada e contínua, vemos nossa criança interior como passado, portanto ela já não existe.
Mas, no tempo aiônico, repleto da nossa meninice, nunca deixamos de ser criança. Nele, estamos sempre dispostos às descobertas como quando éramos pequenos, tudo pode ser (re)feito e (re) construído. O tempo aqui não é numerável ou sentido como uma sucessão de acontecimentos, mas como encantamentos vivenciados”, explica. Para ele, essa visão cronológica marcada por uma divisão entre passado, presente e futuro é que contribui para a sensação de que perdemos nossa criança interior. Assim, “recuperá-la é em grande parte exercitar os sentidos e renovar uma forma de experimentar a vida a partir das intensidades que sentimos, mais do que com base no calendários”, conclui o filósofo.
Sensações já conhecidas
“É isso!”, penso. A gente não se perde no meio do caminho, continuamos sendo apenas. Para facilitar esse processo de renovação periódica, uma boa estratégia a ser considerada é observar de perto as crianças de hoje, fonte de inspiração inesgotável, com acesso permitido e recomendado. Elas, que ainda são, podem nos fazer lembrar que a gente segue sendo também. Um convite, enfim, a redescobrir e provar as sensações já conhecidas como eternas novidades. Mas, mantendo aquele assombro inicial que torna tudo tão mais colorido e quase inédito.
No livro de ensaios E Se Obama Fosse Africano? (Companhia das Letras), o escritor moçambicano Mia Couto me ajuda a entender definitivamente a infância não como um tempo, uma idade, uma coleção de memórias. Ele escreve: “A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar […] a infância não é apenas um estágio para a maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós”.
Cuide bem da sua história
Ainda que haja sucesso em levar a vida com a presença da infância não como tempo marcado pelo tique-taque, mas como uma forma de experimentar os acontecimentos com o encanto das novidades e surpresas boas, seguimos sujeitos a transformações. Manter a menina ou o menino que um dia fomos é um desafio e tanto, sobretudo neste acúmulo de passado que os dias vão nos impondo e com o peso da rotina. Mas só até a gente entender que isso tem a ver com cuidar da nossa essência. Por mais que mudemos, e isso é bom, sempre seremos essencialmente os mesmos.
Acho que a construção de um eu autêntico vem daí. O tempo vai nos moldando cada um a uma forma, e os padrões nunca se repetem. Além da ação transformadora do tempo, somos um apanhado de nossos antepassados e resultado de trocas estabelecidas com todos aqueles com quem nos relacionamos e que contribuem para o desenvolvimento do que a gente é neste dado momento, mas que pode receber nova configuração em breve.
A junção de cada “eu” resulta em um todo comum feito de “nós”, uma riqueza universal que não pode ser perdida. É a isso que se dedica o Museu da Pessoa, que tem como objetivo colecionar histórias de vida de homens e mulheres comuns em seu acervo e reconhecer que toda história tem valor e deve ser considerada um patrimônio. “[…] ouvir o outro é também uma forma de cuidado. Um cuidado que nos leva a aprender com cada história de vida e a descobrir, por trás de cada narrativa, um pouco da alma humana”, diz a frase extraída de um texto em comemoração aos 25 anos do lugar.
Construa próprias narrativas
“Estamos continuamente reelaborando nossas experiências. O que define a individualidade, o que nos torna únicos, não é apenas nossa trajetória, mas também a forma como elaboramos nossa narrativa pessoal, selecionando o que e como contar”, expõe Lucas Ferreira de Lara, mestre em história social e coordenador do Programa Conte Sua História, do Museu da Pessoa, em São Paulo. É por isso que, para construir uma narrativa coerente capaz de dar propósito à nossa vida e que, ao ser compartilhada, possa gerar entendimento, escolhemos as palavras, reinterpretamos trechos e editamos capítulos, de forma livre e passível de alterações sempre que necessário. O historiador completa considerando que “não existe uma história de vida igual a outra, e não existe uma única história, fixa e estática, para cada um de nós”. Para ele, “contar e recontar nossa história é um exercício fundamental para nos ajudar a entender quem somos”.
Nesse processo de construção das próprias narrativas, o filósofo e educador Gabriel Limaverde diferencia como podemos agir inspirados pela medição do tempo cronológico ou por vivências: “A narrativa biográfica é a que cria para nossa vida parte do lugar em que estamos hoje e entende a infância como um elemento que contribuiu para chegarmos até aqui. Vemos a infância como um tijolo que, somado a outros, forma a casa que construímos. Numa outra visão, menos comum, não deixamos de ser crianças.
Nessas biografias, a infância não é um tijolo, mas a vontade de construir uma casa, que nunca está pronta. Preservar a nossa história e passá-la adiante é uma forma de destacar a nossa essência, o que nos aproxima e nos faz parte de um todo compartilhado. Há poesia em olhar para as pessoas e reconhecer essa história comum, porque carrega o que é meu e seu, mas também de todos.
Colecione mais experiências
O ato de criação da composição da nossa vida está em constante movimento. Depende da gente permanentemente selecionar as experiências para ir ordenando o que deve ficar registrado na memória. De modo que, ao recontar a nossa história, estejamos dispostos a botar aquele sorriso no rosto para passear, satisfeitos. Por isso, dar um novo significado é um processo imperativo, que pode nos ajudar a cuidar da criança que existe dentro da gente — todo mundo tem a sua.
O escritor carioca Márcio Vassallo, mestre em reconhecer a serventia do encantamento que se manifesta no dia a dia, compartilha os truques que desenvolveu para que aquele gosto bom de infância nos acompanhe. “Sempre careço botar reparo no olho e parar para ver tudo à minha volta, sem pressa, com assombro, perturbação, estranheza e sobressalto. Numa época em que contemplar se tornou um verbo fossilizado, escavar brechas dentro da gente para reparar com autenticidade nas coisas aparentemente mais simples e banais é um vício irresistível”, confessa.
Para ele, “ressignificar palavras” é um exercício que traz a meninice para a vida. “E tudo o que traz infância me tira o sono, me devolve a asa, me reaproxima da poesia que está em toda parte”, diz. Deve ser por isso que as crianças, ao atribuírem novos significados às palavras, nos ajudam a nos redirecionarmos por dentro. É que elas ainda têm a presença do descuido muito viva. Esse exercício pode nos trazer aquele centro desequilibrado que nos devolve a nós mesmos, fazendo-nos “sentir ainda mais próximos das nossas postagens mais autênticas, dos nossos desejos essenciais, das nossas verdades mais íntimas”, aponta o escritor. Afinal, “não sou eu que mantenho o meu menino por dentro. É ele que me mantém”, confessa.
Crianças de ontem ainda somos nós
Tão bonita essa ideia de troca com a gente mesmo. Ela nos lembra, primeiramente, que aquilo de que precisamos está bem guardado dentro de nós, basta permitir que se manifeste e tome conta. Um reforço para entender que a criança de ontem ainda somos nós. Hoje, com 30 anos, esta é a história que resolvi contar. É sobre a menina que ainda vive em mim de olhos atentos espreitando o que está por vir. E ainda cheios daquele mesmo brilho de quando eu me escondi para ser encontrada.
Laís Barros Martins é autora do livro A Infância dos Dias (Laranja Original).
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