Como é acordar com a visão de um mar de nuvens na janela e raios de sol filtrados por ramos de araucárias? E estender a vista num horizonte de luz rosada onde não mais se distingue o que é céu e o que é montanha?
Eu não tinha ideia desse universo de possibilidades ao me mudar há dois anos para Campos do Jordão (SP). É a cidade mais alta do Brasil, encravada na Serra da Mantiqueira, a quase 1700 metros de altitude.
Sempre amei as cadeias montanhosas. Já vivi nos Alpes, mas não pensava em me deslumbrar com tão belas paisagens ao viajar pelas diversas regiões dessa serra que se estende entre as divisas de São Paulo, Minas e Rio. É como conhecer um inesperado país feito de maciços de pedras, cachoeiras e matas.
E tão surpreendente como as vistas que se abrem a cada curva da estrada é a nova cultura que nasce por lá. Há um esforço para recuperar antigas receitas de cozinha da região e descobrir os sabores de verduras e frutas cujo uso foi abandonado.
O clima caipira orgânico da Serra da Mantiqueira
É estimulado também um cuidado extremo na produção de culturas orgânicas, seja de café, vinhas ou frutas. E existe, ainda, um esforço para que as pessoas não se esqueçam que na Serra da Mantiqueira a cultura original é caipira, da roça mesmo. Ainda que as cidades de Campos do Jordão e Monte Verde (MG) tenham centros turísticos que as fazem assemelhar-se a vilarejos alpinos.
Mas, no geral, o povo simples da montanha fala mesmo é com o r mineiro (porrrrta), e usa palavras como vremeio (vermelho) e tremoso (teimoso).
Mais do que fondue, essa gente gosta de um bom leitão pururuca, café com broa de milho e mandioquinha frita com linguiça feita em casa.
Só que na nova, e igualmente deliciosa, gastronomia local, o angu pode ganhar a companhia do cogumelo shitake produzido na região, ou o torresminho crocante o acompanhamento de uma cerveja feita com limão-cravo e gengibre de uma microcervejaria. Mas essa é uma outra história, que faz parte do próximo bloco.
Que tal turistar pelas fazendas da região?
Um dos grandes passeios da chamada Nova Mantiqueira é visitar as propriedades rurais. É uma delícia passar umas horas em cada fazenda, adquirir seus produtos ou saboreá-los em seus restaurantes.
Em algumas delas, como a Fazenda Água da Capoeira, por exemplo, na região de Santo Antônio do Pinhal (SP), é possível encher uma sacola com frutas colhidas no pé ou escolher verduras na horta orgânica.
Em outras pequenas propriedades, pode-se visitar plantações de flores comestíveis cultivadas por meio de hidroponia e sem uso de defensivos agrícolas, como na Gastro Flowers, em Campos do Jordão.
Uma das propriedades que vale a pena visitar e que abre suas portas aos sábados é a Santa Terezinha, que tem mais de um século e fica em São Bento do Sapucaí (SP).
O café de lá, cuja produção é vendida quase totalmente para o exterior, já ganhou a primeira colocação no prêmio mais prestigiado da área no Brasil, o Cup of Excellence.
Os pés de café são plantados à sombra de árvores maiores como a taiuveira e, por isso, sua produção é conhecida como”café sombreado”, um sistema que confere bastante robustez e saúde à planta.
Clima, solo, altitude, forma de colheita (só os grãos maduros são retirados) e o trabalho realizado no terreiro são os itens que determinam um bom café. “Produzo 300 sacas por ano de diferentes tipos de café, penso em chegar a 600. Mas o mais importante é que a produção seja de alta qualidade”, diz o engenheiro agrônomo e proprietário Paulo Sérgio de Almeida, que tem clientes em países como Japão e Estados Unidos. Um pacote de 1 kg do café Fazenda Santa Terezinha custa 49 reais.
Saúde debilitada por agrotóxico motivou produção orgânica
Há um forte motivo para que a produção da Santa Terezinha seja totalmente orgânica. Há 30 anos, Paulo fez um transplante de rim. A provável causa: intoxicação involuntária por agrotóxicos. “Prometi a mim mesmo nunca mais envenenar ninguém com o seu uso”, diz ele.
Também seu filho, Fabrício, dono de uma microcervejaria, instalada dentro da Santa Terezinha, a ZalaZ, não usa aditivos químicos na bebida, que pode levar ingredientes como café, amora, pitanga, chá de cáscara (casca e polpa de café), limão-cravo ou maracujá.
Outra fazenda que vale a pena conhecer é o Viveiro Frutopia, e o restaurante Entre Vilas, em São Bento do Sapucaí. Quando decidiu fazer vinhos de altitude de qualidade com uvas europeias, cultivar frutas exóticas delicadas, como amoras e framboesas, ou, mais ainda, plantar lúpulo para a produção de cerveja, não houve quem não chamasse Rodrigo Veraldi de maluco.
Por isso, ele não teve dúvida em batizar sua propriedade de Frutopia, uma mistura da palavra “fruta” com “utopia” — e o sonho deu certo. Uma cobertura de plástico salva suas videiras da chuva e ele já está na terceira safra de vinhos.
Azeitonas em plena Serra da Mantiqueira
O casal de proprietários da Fazenda Oliq também resolveu ousar e mudar de vida. Os dois compraram terras para plantar oliveiras e colher azeitonas, que hoje resultam em azeites saborosos.
No armazém local, além dos vários azeites experimentados num tipo de pão de sabor suave, a fougasse (o parente francês da focaccia), destacam-se ainda os doces feitos com frutas de altitude, tais como a fragaia, japoca, grumixama, além da uvaia e do cambuci. Ainda dá espaço para salivar mais? Então vamos em frente.
Consciência que gera qualidade
Sabores da Mantiqueira é o título de um projeto realizado por três professores da Faculdade de Gastronomia do Senac de Campos do Jordão para estimular os alunos a conhecer melhor os produtos da Serra e desafiá-los a usar esses ingredientes em novas receitas.
Para isso é feito um levantamento detalhado dos produtos locais de acordo com quatro critérios: produção orgânica, relevância culinária, identidade local e preocupação com o meio ambiente.
O conteúdo resultante das pesquisas serviu para a realização de um documentário e um livro. Mas, antes de irem com os alunos para conhecer a região, os próprios professores foram desbravar as montanhas e vales ao longo do Rio Sapucaí-Mirim, o mais importante da Serra da Mantiqueira. Foi uma surpresa.
“Já estamos fazendo o levantamento há mais de três meses numa determinada microrregião, tarefa que a gente pensava em liquidar em poucos dias, e ainda nem chegamos na metade de tudo o que é produzido por lá”, conta Vitor Pompeu, professor do Senac e um dos sócios do projeto.
Qualidade que garante o sucesso
Já Ricardo Barbosa, professor de história da alimentação, hoje mais dedicado ao estudo do ciclo econômico e sustentabilidade da produção, ensina aos alunos como a qualidade pode se transformar num diferencial redentor para os produtos da região.
“Posso ir com eles a uma plantação de um produtor de morangos orgânicos, por exemplo, e mostrar o trabalho meticuloso que ele tem no seu cultivo. Assim é mais fácil entenderem a razão de o preço final ser um pouco mais alto”, diz ele.
O resultado dessa ação tão simples? Plantar nos futuros chefs o gosto pelo uso dos produtos locais e, dessa maneira, alimentar um ciclo virtuoso de qualidade, frescor e saúde.
“Os agricultores só permanecem na região se os seus produtos têm saída. E os chefs só podem escolher utilizá-los se os conhecerem e oferecerem a seus clientes”, ressalta Ricardo.
O desafio do terceiro integrante do projeto, o professor e chef Vitor Rabelo, é trazer esse conhecimento para a prática, e desafiar os alunos a inventar pratos criativos com os ingredientes tradicionais da região.
Tem dado certo também. Eles elaboram pratos da entrada à sobremesa que depois são avaliados pelos professores. E a moçada simplesmente ama esse desafio.
Os restaurantes da Serra da Mantiqueira
A fórmula tradição mais criatividade é usada hoje por muitos chefs da Serra da Mantiqueira. Cito só alguns, porque a lista é grande. Por exemplo, Mônica Rangel, que há 20 anos comanda o Gosto com Gosto, em Visconde de Mauá (RJ), e que elabora uma cozinha de tradição mineira, como o brasileirinho, sobremesa feita com limão e doce de leite.
Ou a chef Anouk Vasconcelos Rosa, que oferece trutas e outras receitas com frutas e legumes de cada estação, do pinhão à alcachofra, do shitake às frutas vermelhas.
É uma cozinha com um delicado toque francês (os pais de Anouk vieram da França) que pode ser apreciada num restaurante à beira de um riacho, o Donna Pinha, em Santo Antônio do Pinhal.
Criatividade e tradição também valem para o restaurante Dona Chica, instalado no Horto Florestal de Campos do Jordão, comandado pelo chef Anderson Cesar Oliveira.
Jordanense da gema, ele é responsável pela volta de frutos típicos da região em diversas preparações, como o tomate de árvore, que conheceu na infância. “Fui de porta em porta até conseguir uma muda. As pessoas não o plantavam mais por aqui.”
O Lá na Roça, em São Bento do Sapucaí, marcado pela hospitalidade, comida saborosa e uma bela paisagem, também pode fazer parte dessa lista. Assim como o Sauá, em Gonçalves (MG), que tem um belo jardim e cardápio assinado pelo chefe professor Vitor Pompeu.
Mas, se você quiser mesmo o máximo, e se seu bolso permitir, visite o Mina, restaurante do Botanique Hotel & Spa, em Campos do Jordão. Lá quem brilha é o chef Gabriel Broide, que deixou para trás prêmios e elogios de críticos paulistas para ter uma vida pacata na Mantiqueira. Uma sugestão: prove as vieiras em calda de pinhão. E depois me conte.
Sobretudo, experiências
Quem não tiver tempo para visitar fazendas ou restaurantes pode comprar os produtos locais em entrepostos. Como o Café do Bosque, dentro do Bosque do Silêncio, em Campos do Jordão.
O dono, Marco Ayres, faz questão de oferecer amostras dos principais itens da loja para o cliente saborear. Ali é possível comprar mel de flores de café, uma deliciosa geleia de laranja, queijos ou cervejas artesanais.
Mas, além de experimentar gostosuras e se deliciar com a paisagem, quando for para a Serra da Mantiqueira faça o possível para interagir com as pessoas de lá.
Foi assim que conheci Tadaki Yamada, um mestre de 77 anos com unhas sujas de terra pelo trabalho como agricultor. O encontrei num lugar simples, mas de beleza incomparável, o Café com Orquídea, em Santo Antônio do Pinhal.
O espaço dos jardins e varanda foi construído por ele, com bambus entrecruzados. No começo, ele estava tímido. Mas, em minutos, já havia me ensinado a fazer uma sandália de palha.
E, ao lado de um café e uma fatia de banoffe, torta feita com banana, caramelo e chantilly, ele me contou entre risadas e lágrimas sua trajetória de vida.
Que é um pouco a sua história, mas também muito da história da gente de fibra da Serra da Mantiqueira. Viver experiências como essa não tem preço.
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LIANE ALVES mora em Campos do Jordão com o marido, Antônio. Conheça mais sobre os lugares citados no texto no site vivernamantiqueira.com.
Conteúdo publicado originalmente na Edição 194 da Vida Simples
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