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    Todo dia é sexta-feira no Rio Grande do Sul
    No dia 22 de maio, o centro de Porto Alegre estava assim: uma eterna sexta-feira (Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini/Fotos Públicas)
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    Hoje é sexta-feira. Dia 327 da enchente que afogou Porto Alegre e meu gosto pelo cheiro e pelo barulho da chuva. Ela é fraca agora, quase irônica, finge sorrir.

    Antes de a Thayse ir embora, me certifiquei de perguntar se ela precisava de algo, se tinha algo que eu podia fazer. “Eu só queria a minha casa”.

    Thayse trabalha comigo e perdeu tudo – e não foi a primeira vez. A casa, no bairro Americana, em Alvorada, segue com água pela cintura mais de 20 dias depois do início do caos.

    No fim de semana quer tentar pegar o cooktop, único eletrodoméstico que ela, acha, se salvou. O resto, tem certeza que a chuva levou ou destruiu.

    Separada dos dois filhos, abrigados também por amigos e parentes. Separada dos três cachorros – que voltou pra salvar quando ninguém queria voltar.

    Thayse é uma das mães solo que gostaria de voltar para casa hoje. Há mais de 650 mil pessoas em abrigos ou acolhidas por quem criou cômodos extras e transformou o espaço do coração em teto seguro em todo o Rio Grande do Sul.

    Dia útil para quem?

    Hoje é sexta-feira e deixei cobertores num quilombo e num museu que virou ponto de coleta. Consegui algumas cestas básicas para famílias de Eldorado – que voltaram para casa mas encontraram uma cidade fantasma, sem acesso à comida (ou alento).

    Hoje é sexta feira e tento conseguir material escolar e livros para alunos que, um dia, voltarão para a escola. Não sabem quando. Quem devia responder só aumenta a ansiedade com respostas vagas, mas honestas, é bem verdade. Eles também não sabem.

    Hoje é sexta-feira e cortei as unhas da Cora, minha filha de 4 anos. Temos, principalmente, água quente, o luxo de poder lavar os cabelinhos, secar com secador, colocar pijama de unicórnio, ler história e sim, cortar a unha.

    Pensei nas milhares de crianças nos abrigos (ninguém sabe o número exato delas). Nas mães que não têm mais aquela tesourinha, quase sempre o presente mais útil de recém-nascido. Elas não podem cortar a unha dos filhos. Nem ler histórias porque, no abrigo, tem hora certa pra luz apagar.

    A gente pode gostar do sol?

    Guimarães Rosa escreveu que perto de muita água tudo é feliz. Eu concordei com ele infinita vezes. Até não conseguir mais concordar. Até odiar a frase e o fato de eu ter sim, desejado viver perto da água e celebrado a chuva como um presente por tantas vezes.

    Do contra, sempre preferi os dias mais cinzas. Nesta sexta-feira, morro de vergonha dessa preferência imbecil. Na cama, Cora me pergunta se a gente pode gostar do sol e eu percebo a besteira que venho repetindo desde que ela nasceu.

    É sexta-feira e as escolas estão fechadas, por decreto. Lojas do shopping estão fechadas. Aí é por falta de gente mesmo. O centro segue quase todo fechado.

    Há muito pacote e caixas e sacolas e fardos ainda fechados à espera do destino certo, nos centros de distribuição de doações da cidade. Os dois lados da equação deviam se encontrar mais. Ou mais rapidamente. E só o que acelera, além do leito dos rios, é o desespero.

    Numa sexta-feira sem fim, sobra culpa. Ela se alimenta daquilo que está claro e óbvio, mas sem solução. Dos culpados óbvios e seus seguidores abanando o rabo. Dos negacionistas. Dos míopes. Dos mal intencionados e dos bem, mas despreparados. De todos, vamos admitir.

    Aqui dentro, culpa por tudo que sei que não consigo fazer, mas queria. Pelo que já devia ter voltado a fazer e sigo congelada. Por sobrar medo e faltar a coragem que Guimarães Rosa avisou: é o que a vida quer da gente.

    Todo dia é sexta-feira

    É sexta-feira e aqui a gente assiste à rádio na televisão da sala. De verdade, o streaming da Gaúcha com imagens ao vivo de cidades afogadas virou o único possível.

    Meus amigos jornalistas, muitos desalojados ou ilhados, há 41 dias numa cobertura sem fim, incansáveis, fazendo história tanto quanto o nível do Guaíba, teimoso.

    Na tela, vejo um homem contar ao repórter que falta R$ 40 pra pagar a passagem de ônibus de volta pra casa, no Sul do Estado. É arrumar o dinheiro ou voltar pro abrigo da capital. Eu choro. Ele consegue o dinheiro.

    Já tinha chorado mais cedo pela bebê gêmea perdida na água imunda. E depois pelas meninas retiradas da creche num colchão inflável. E sobretudo pelos que se abraçaram antes de poder fugir da fúria da encosta úmida, impiedosa.

    Mais de 160 mortos. Duas milhões de pessoas afetadas.

    Cora olha pra mim e pergunta: — você está chorando por causa das pessoas ainda, mãe?

    É sexta-feira e a resposta é sim.
    Chorando por causa das pessoas.
    Amanhã é sexta-feira de novo.
    E a previsão é de chuva.

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    Sabrina Passos Cimenti é catarinense mas escolheu Porto Alegre como lar há mais de 10 anos. Jornalista, dirige uma consultoria americana no Brasil e faz parte do Beyond, movimento global de apoio à adaptação climática, focada neste momento em atender as necessidades do RS. A campanha atual é para apoio à volta às aulas e compra de material especial e livros.

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