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ONGs de gastronomia social combatem a insegurança alimentar
Luccio e Vó Tutu (à direita na foto) foram convidados, junto a outras ONGs, para palestrar sobre gastronomia social na 27ª Bienal do Livro, em 2024, em São Paulo (Foto: Divulgação)
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Em 2020, Maria Paulina Avelino, com 69 anos, acompanhava as notícias do início da pandemia de covid-19, quando foi intuitivamente assombrada pela certeza de que a fome chegaria na comunidade de Brasilândia, na Zona Norte de São Paulo (SP). Sem hesitar, ela decidiu ajudar a vizinhança da qual faz parte.

Sem saber por onde começar, ela conta que sua inspiração veio do divino. No momento de seu desespero, uma voz tocou o fundo do seu coração e lhe disse: “faz pão, mulher. Faz pão”.

“Quando eu ouvi essa voz, fiquei sem entender. Questionei como se fazia pão e novamente essa voz me falou apenas: ‘faz pão’”, lembra a senhora. Sem indagar novamente, ela pediu para sua filha ir ao mercado comprar os ingredientes para começar a sua produção. Então, passou a assar 200 pães por dia e distribui-los a pessoas da vizinhança.

A distribuição gratuita e diária dos pães foi ganhando fama na comunidade. Em pouco tempo, era comum ver uma fila de quase 50 pessoas se formando em sua porta, esperando pela doação . “Então eu vi o peso da responsabilidade que tinha adquirido. Foi assim que começou o nosso trabalho”, recorda Vovó Tutu, como foi carinhosamente apelidada.

Ainda na pandemia, a distribuição contava com todos os cuidados possíveis para garantir a segurança dos que iam a casa de Maria atrás do pão. As filas mantinham uma distância segura entre cada pessoa, e eram separadas em duas: uma para o grupo de risco, e uma para os demais. Todos usavam máscaras para se proteger, e aqueles que não tinham poderiam pegar uma máscara descartável com a Vovó.

Hoje, o Instituto Ações Sociais Vó Tutu doa mais de 2 mil pães e 300 litros de chá diariamente. A produção foi aprimorada quando o apresentador de TV Luciano Huck conheceu o projeto e equipou a cozinha de Maria Paulina com máquinas e um forno industrial.

A doação do apresentador foi transmitida em seu programa, gerando ainda mais visibilidade ao projeto, que hoje, além dos pães gratuitos, distribui kits de higiene e de cestas básicas.

Além disso, o Instituto promove terapia em grupo para idosos e cursos de capacitação para moradores de Brasilândia, dentre outras ações.

Gastronomia como ferramenta social

Outro projeto que atua no combate da insegurança alimentar é o Instituto Capim Santo (ICS), que surgiu em Trancoso (BA). A organização sem fins lucrativos, criada em 2009 pela chef Morena Leite, é focada em educação e também utiliza a gastronomia como ferramenta de transformação social. Hoje, o projeto atua em três estados: São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.

“Até 2020, o ICS trabalhava com a formação de mão de obra para o mercado de hospitalidade. Mas com a chegada da pandemia, as cozinhas e escolas que atuamos passaram a produzir refeições para pessoas em vulnerabilidade, chegando a distribuir mais de 700 mil pratos até 2023”, explica Luccio Oliveira, presidente do Instituto.

Mesmo com o fim da pandemia, os idealizadores do projeto entenderam que a fome continua assolando muitos brasileiros. Tanto os que estão com fome, sem ter o que comer, como aqueles que estão em situação de insegurança alimentar, ou seja, apesar de ter algum alimento, não tem garantidas as três refeições diárias com a qualidade nutricional necessária para o corpo manter sua saúde.

Por conta disso, hoje o ICS é gestor de uma das maiores cozinhas do Bom Prato, um programa de alimentação para pessoas em vulnerabilidade do governo do Estado de São Paulo. Apenas nessa cozinha, localizada na rua 25 de março, na capital paulista, são produzidas e distribuídas cerca de 4 mil refeições todos os dias.

Para Luccio, a gastronomia social é uma poderosa ferramenta, pois o trabalho desenvolvido por organizações como a dele e de Vovó Tutu são fundamentais para o acesso à alimentação regular e saudável em comunidades carentes.

Gastronomia e sustentabilidade

“Os projetos na área da gastronomia têm uma importância que vai além do que se pode imaginar”, declara Vó Tutu. Além das doações, o instituto ensina pessoas a reaproveitar alimentos, ajudando a diminuir a insegurança alimentar e promovendo a sustentabilidade nos lares da comunidade.

“As pessoas não têm noção de tantas coisas que podem aproveitar, mas que simplesmente jogam no lixo. A pandemia trouxe esse cuidado, esse olhar, para que as pessoas possam sobreviver também do reaproveitamento alimentar”, explica Maria.

Para Luccio, essa também é uma preocupação do Instituto Capim Santo. Nas aulas do projeto, os alunos aprendem, desde o primeiro dia, técnicas da gastronomia sustentável, como uso completo dos alimentos, o respeito à sazonalidade, a valorização dos produtores locais e o uso consciente de água e energia.

“Os alunos podem replicar esses conhecimentos em suas casas e comunidades, tornando-os grandes propagadores de práticas que fazem bem ao meio ambiente”, aponta o presidente.

Os princípios da cozinha sustentável também são aplicados na produção das refeições destinadas à doação. Além disso, a distribuição das quentinhas é feita de forma sustentável, evitando a geração de resíduos e a emissão de gás carbônico.

Doando ensinamentos: ensinar também é ajudar

Além das doações, ambas instituições trabalham com cursos de capacitação para os seus beneficiários. O ICS, por exemplo, oferece cursos de gastronomia social nas cidades de Trancoso, Salvador, Rio de janeiro e São Paulo.

“O mercado de hospitalidade e o da gastronomia são uns dos que mais empregam no mundo. Mas, ao mesmo tempo que tem muita demanda por mão de obra, são poucas as oportunidades de formação profissional gratuita”, explica Luccio.

“O convívio com colegas de diferentes origens ao longo do curso faz com que essas pessoas possam ampliar sua visão de mundo, promovendo o respeito à diversidade. Assim, o mais importante é que dos nossos cursos saem cidadãos melhores, além de bons cozinheiros e futuros chefs”, diz.

Para Vó Tutu, essa capacitação também é essencial. “As pessoas passam a ver oportunidade de mudança através da gastronomia. Elas passam a prover renda a partir dos produtos que elas mesmas fazem e comercializam. Um percentual dos valores passa a fomentar o comércio local, ajudando também na geração de empregos e renda de toda a comunidade”, aponta.

Esperança de uma realidade mais justa

No começo, o seu foco era fazer pão, mas no decorrer do tempo Vó Tutu percebeu a importância de passar seus ensinamentos e técnicas para outras pessoas. “Se você capacita, ensina a empreender, dá suporte e aponta o caminho, está criando expectativas e esperança nessas pessoas, algo que em muitos isso não existia mais”, diz Vovó.

A meta de Maria é acordar um dia e ver que a fila do pão não existe mais. “A fila do pão não é satisfatória, é uma necessidade. Nós capacitamos essas pessoas para que elas possam tirar o seu sustento. Afinal, a educação é transformadora, e é disso que essas pessoas precisam”, aponta a senhora.

Maria conta que não teve uma formação, mas que aprendeu muito com a vida. “Para me tornar Vó Tutu, a Maria Paulina teve que passar por muitas dificuldades, remover lixos para poder ajudar a sustentar os irmãos, e não foi fácil chegar aqui. Mas foi um grande aprendizado”, explica a Vovó.

Hoje, Maria sabe que aprendeu da vida o mais valioso: a importância de ajudar e transformar outras pessoas a terem uma trajetória mais fácil e digna, por meio da comida.

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