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Hortas urbanas estimulam conexão com natureza e vida saudável
Lúcia Maria dos Santos é uma das participantes do projeto Horta Social, no Conjunto Ceará, bairro periférico de Fortaleza (Foto: Alessandro Fernandes/Vida Simples)
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Dos territórios de cultivo à mesa, o alimento percorre diferentes caminhos até chegar ao consumidor. Nesse processo, quanto maior o número de intermediadores, mais encarecido se torna o produto. Uma alternativa a essa cadeia de valor, muitas vezes injusta com o produtor rural, são as hortas urbanas comunitárias, que diminuem a distância entre produção e consumo e estimulam um estilo de vida mais saudável.

As hortas urbanas são áreas reservadas ao cultivo de alimentos nas cidades que podem partir de diferentes iniciativas. O plantio comunitário ganha potencial educativo ao ser feito nas escolas. Também há oportunidades de cultivo de hortas urbanas nas próprias residências, em ambientes corporativos, hospitalares – com as hortas terapêuticas –, ou ainda em terrenos baldios.

Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) mostram que, em 2022, mais de 800 milhões de pessoas cultivavam alimentos nas cidades, o que representa entre 15% e 20% da produção global.

Mais saudáveis e com menor impacto ambiental, já que reduzem a emissão de gases do efeito estufa na atmosfera, as hortaliças produzidas em hortas comunitárias também aproximam as pessoas da natureza.

Hortas urbanas fortalecem vínculos comunitários

A prática de cultivo do próprio alimento é uma atividade humana há pelo menos 12 mil anos. Por um lado, a seleção humana reduziu a variedade de alimentos. Por outro, o manejo de espécies e plantas, além do desenvolvimento da agricultura, fortaleceram o cultivo.

Apesar de ser uma prática antiga, os debates sobre a agricultura urbana só tomaram força em meados da década de 1980. Em 1999, a agricultura urbana e periurbana foi oficialmente reconhecida como uma estratégia para reduzir a insegurança alimentar nas cidades.

O reconhecimento foi feito na 15ª sessão do Comitê de Agricultura em Roma, e seguido pela Cúpula Mundial da Alimentação, em 2002, e, em 2008, pela Força Tarefa de Alto Nível da ONU para a Crise Global de Alimentos.

As hortas urbanas exercem um papel fundamental em territórios onde há vulnerabilidade social e econômica. É o que dizem dizem as autoras Mariana Garcia e Jéssica Franco no capítulo “Os ambientes alimentares e as hortas urbanas”, no livro Hortas Comunitárias Urbanas: promovendo a saúde e a segurança alimentar e nutricional nas cidades (Instituto da Saúde, 2024). De acordo com elas,

“Ambientes alimentares de regiões socioeconomicamente desfavorecidas são menos saudáveis em relação à disponibilidade de frutas e hortaliças, qualidade dos alimentos, tipos de estabelecimentos, preços dos alimentos, falta de estabelecimentos com infraestrutura para estocar certos tipos de alimentos, entre outros”.

O estilo de vida dos vizinhos das hortas urbanas

Pessoas caminham em fila indiana com sacolas no braço dentro de uma horta com estufa. Pessoas em situação de vulnerabilidade social são as mais beneficiadas pelas hortas urbanas em Fortaleza (Foto: Marcos Moura/Prefeitura de Fortaleza)

Ainda segundo as autoras, as hortas urbanas coletivas têm potencial em serem espaços pedagógicos de aprendizagem sobre Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), sustentabilidade ambiental, resiliência comunitária, justiça social e identidade cultural.

“Oferecem uma alternativa ideológica ao senso comum dominante dos sistemas alimentares industriais, propriedade privada e desenvolvimento imobiliário urbano.”

Um estudo publicado em 2018, que investigou resultados relacionados à alimentação e nutrição em decorrência da participação em hortas urbanas, concluiu que há saldos positivos.

Entre eles, aumentos do consumo de frutas e hortaliças, melhor acesso a alimentos saudáveis, partilha da colheita com familiares e amigos, além de valorização da produção orgânica, da culinária e da alimentação saudável.

“Os autores concluem que a participação em hortas urbanas revelou um impacto positivo em importantes práticas alimentares saudáveis, acesso, crenças, conhecimentos e atitudes”, escrevem as autoras.

Hortas urbanas no Brasil reduzem a insegurança alimentar

Sendo assim, além de diminuir a distância entre o campo e a cidade, as hortas urbanas são espaços de aprendizagem e experimentação. “A implementação do projeto de horta comunitária promove diversas atividades resilientes e reflexões que geram benefícios socioambientais amplos e permanentes”, explica Daniel Garcia, engenheiro agrônomo e doutor em horticultura pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Entre os benefícios, estão redução da insegurança alimentar e nutricional, inclusão social, regeneração ambiental, redução dos gastos com energia e alimentos, fortalecimento comunitário e valorização cultural.

De acordo com a plataforma Sampa+Rural, há 188 hortas urbanas mapeadas na cidade de São Paulo. O município, que fica em uma área de 1.521 quilômetros quadrados (km²), tem cerca de um terço do território em áreas rurais, especialmente na Zona Sul da cidade.

No Sul do país, em Curitiba, no Paraná, cerca de 170 hortas comunitárias beneficiam a população. O projeto, coordenado pela Secretaria Municipal da Segurança Alimentar e Nutricional (SMSAN), apoia o cultivo em vazios urbanos da cidade, realizado por pessoas organizadas por meio de associações de moradores ou entidades sociais.

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Engajamento e melhoria na qualidade de vida

Uma iniciativa semelhante acontece em Fortaleza, no Ceará, com o projeto Horta Social. Com início em 2016, tem como objetivo combater a insegurança alimentar da população mais vulnerável, promover a agricultura urbana e fortalecer os vínculos comunitários.

Os alimentos são distribuídos para as pessoas de baixa renda e idosos cadastrados no projeto municipal. A colheita é distribuída por ordem de chegada. O público atendido também participa do plantio e manejo da horta, além de campanhas de incentivo à alimentação saudável e de prevenção de doenças.

A cidade conta hoje com seis hortas sociais e uma produção de seis toneladas por mês de alimentos orgânicos como alface, couve, tomate cereja e coentro.

Até outubro deste ano, o projeto realizou 27 colheitas, com mais de 24 toneladas de alimentos distribuídos. A Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) pretende expandir as atividades da Horta Social no município nos próximos anos.

“Além da entrega dos alimentos, o projeto incentiva a agricultura urbana e periurbana por meio dessas atividades. A própria comunidade se inscreve, participa do plantio e acompanha todo o processo, desde o início, passando pelo manejo, até a colheita, tornando-se beneficiária direta”, diz Katiane Bispo, nutricionista e coordenadora de segurança alimentar e nutricional da SDHS.

Além das atividades que envolvem a colheita e distribuição, a população também participa de formações que envolvem aspectos nutricionais e orientações sobre como aproveitar esses alimentos de forma integral.

Educação, autonomia e engajamento social

Uma foto de seis pessoas sorridentes em uma horta comunitária. Todas estão vestindo camisetas verdes com o logo de um projeto agrícola local, em Fortaleza, conforme as identificações. O grupo é composto por quatro mulheres e dois homens, de idades variadas. Uma das mulheres usa chapéu e óculos escuros, e segura folhas de couve. Outra senhora segura um molho grande de couve e uma garrafa de água roxa. Todos parecem felizes e descontraídos, abraçados e posando juntos. Ao fundo, há estufas cobertas com telas para cultivo de plantas, em um espaço organizado e verde. Laryssa Ellen (à esquerda), e participantes do projeto Horta Social, em Fortaleza (Foto: Alessandro Fernandes/Vida Simples)

Em parceria com o Instituto de Arte e Cidadania do Ceará (IAC), o Horta Social engloba parte das atividades do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, voltadas a idosos.

Entre as ações, estão práticas educativas sobre envelhecimento e bem-estar, participação social, autonomia e protagonismo da pessoa idosa. Também são realizadas trocas de conhecimento sobre horta social e transformação socioambiental, sabedoria popular e ervas medicinais, valorizando memórias, habilidades e potencialidades.

O projeto também envolve as pessoas idosas em programas que vão além das formações na área nutricional e agroecológica. “Algumas ainda não tiveram a oportunidade de conhecer a praia, por exemplo, então queremos levá-las até lá. Muitas também nunca tinham frequentado algum cinema”, explica Laryssa Ellen, educadora social na Horta Social do bairro Conjunto Ceará, na periferia de Fortaleza.

“Nosso objetivo é sempre proporcionar atividades que fujam do cotidiano delas, que mostrem algo novo e expandam seus horizontes”, completa.

Como as hortas urbanas impactam as pessoas?

Para Lúcia Maria dos Santos, 63 (na foto em destaque desta matéria), o projeto a interessou a partir do momento em que viu amigas participarem da iniciativa. “Eu cheguei aqui e comecei a conversar com as ‘meninas’, porque estava me sentindo deprimida. Com a ajuda delas, consegui melhorar”, conta a aposentada.

Lúcia, que é moradora do território, explica que viu a rotina mudar depois que passou a frequentar as atividades do projeto. “Minha filha ficou muito alegre. Eu não gostava de legumes, não era muito fã. Aí ela disse: “ô mãe, que bom! A senhora tem que comer isso mesmo, por causa da sua idade.”

Junto com as atividades educativas, há momentos lúdicos e de interação social. “Fui mostrar para algumas delas uma brincadeira comum, mas percebi que muitas nunca tinham tido contato com o jogo da memória. Tive que explicar como funcionava e como jogar, porque, para nós, é algo comum”, diz Laryssa.

“Quando crianças, brincávamos com isso, mas elas não. Muitas nem brincavam na infância, pois tiveram que começar a trabalhar muito cedo.”

Hortas urbanas promovem melhor qualidade de vida

Com o objetivo de tornar as cidades mais sustentáveis, diferentes iniciativas governamentais, privadas ou comunitárias somam esforços para unir o concreto com o verde. As hortas urbanas são parte dessa mudança, presentes no Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana, instituído em 2018.

Os desafios enfrentados nos espaços urbanos exigem que busquemos medidas inteligentes para mitigá-los ou superá-los, promovendo assim o desenvolvimento sustentável que desejamos alcançar. É neste contexto que eu identifico a horta comunitária como grande aliada no combate aos inúmeros desafios vivenciados em centros urbanos”, diz Daniel Garcia, que gere a Aromatizando Jardins, empresa direcionada para a elaboração e mentoria de projetos de hortas urbanas.

Segundo o especialista, apesar de diferentes exemplos no país, as iniciativas públicas no Brasil são ainda incipientes diante das possibilidades. “Não é lamentável que o Brasil, sendo um dos maiores produtores de alimentos do mundo, ainda enfrente insegurança alimentar e nutricional?”, questiona.

Entre outras propostas, Daniel acredita que o Estado precisa incluir as hortas comunitárias no planejamento urbano da cidade. Assim como aprovar uma legislação que possa regulamentar o funcionamento desses lugares, garantir a manutenção e incentivar a expansão.

O engenheiro agrônomo defende a integração de pessoas em situação de vulnerabilidade social em projetos de educação ambiental. Criar fundos municipais para financiar projetos de hortas comunitárias, oferecer cursos de capacitação, apoiar pesquisas e projetos sobre o tema também são soluções. E, por fim, integrar a iniciativa com a merenda escolar.

“O primeiro passo é o Estado incluir o projeto de horta comunitária em suas diretrizes como uma estratégia eficaz para mitigar os diversos problemas enfrentados diariamente nas áreas urbanas. Em seguida, é essencial criar programas e legislações que promovam a implementação assertiva dessa iniciativa”, argumenta.

Como fazer uma horta urbana no meu bairro?

Uma imagem de uma grande estufa de cultivo com várias fileiras de vasos pretos contendo pés de alface verde e saudável. As plantas estão organizadas em bancadas de madeira, criando um corredor central entre as fileiras. Ao fundo, algumas pessoas vestidas com roupas verdes estão cuidando ou observando a horta. A cobertura da estufa é feita com tela para proteger as plantas, permitindo a entrada de luz natural. O solo é de terra batida, e o ambiente é limpo e organizado, evidenciando um projeto de agricultura sustentável e bem cuidado. (Foto: Marcos Moura/Prefeitura de Fortaleza)

De acordo com o pesquisador, é fundamental comunicar à prefeitura, capacitar os interessados sobre agricultura urbana e engajar a população na localidade.

“Sem os documentos legais para iniciar o projeto, há grande risco de o terreno se tornar irregular”, afirma Daniel, que visitou e aprimorou conceitos sobre hortas urbanas em estudos realizados no Brasil, assim como nos Estados Unidos (New Jersey University) e na China (Shanghai Jiao Tong University).

Além disso, ONGs, universidades, prefeituras e empresas podem acelerar a implementação e desenvolvimento do projeto, mas não são requisitos. O ideal é que as pessoas também estejam instruídas sobre técnicas de agricultura e manejo das espécies.

“O projeto pode ser implementado de maneira autossustentável, utilizando técnicas ecológicas, materiais recicláveis e, sobretudo, o comprometimento das pessoas”, sugere.

Daniel Garcia recomenda também que as hortas urbanas sejam conectadas com elementos complementares, como composteiras, cisternas, minhocários e geradores de energia renovável.

“Dessa forma, as hortas urbanas se tornam mais versáteis e aumentam sua capacidade de conscientização de forma permanente sobre os danos que o distanciamento da natureza pode causar na sociedade urbana”.

Para ele, o maior desafio enfrentado hoje é a burocracia para o uso de terrenos baldios subutilizados. Apesar de influenciar significativamente na qualidade de vida dos moradores e impactar o bem-estar em ambientes de trabalho ou escolares, as hortas comunitárias precisam de mobilização e pressão social para que recebam financiamento adequado.

“Embora as hortas comunitárias apresentem soluções eficazes para superar vários problemas socioambientais e econômicos, eu entendo que a sociedade não está completamente conscientizada sobre a magnitude do projeto. Além disso, o Estado ainda não reconheceu essa ferramenta socioambiental como prioritária”, conclui.

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