Como garantir uma alimentação saudável no futuro?
O futuro da alimentação deve contar com a junção de tecnologia e sabedoria, com redução do desperdício e cultivo diverso que enriquece o solo. Isso tudo sem deixar de lado a relação entre comida e afeto, tão preciosa para as conexões humanas
No final da minha adolescência, no ano 2000, tive a oportunidade de estagiar em um laboratório de controle de qualidade de uma multinacional do ramo da alimentação.
A empresa produzia aromas e essências para grandes empresas alimentícias do mundo. Cursava o último ano do Técnico em Alimentos. Curso que não seguiria, preferindo dep0is estudar Jornalismo.
Mesmo assim, minha memória olfativa ainda não consegue se libertar do cheiro que diariamente exalava da fábrica a partir das combinações de ésteres, ácidos, cetonas e aldeídos, por exemplo.
Juntos, a grosso modo, esses “ingredientes” resultam no sabor artificial de muitos dos alimentos industrializados que perduram no supermercado até hoje.
Incluindo, claro, todos os refrigerantes e salgadinhos. Ao ver aquilo, era evidente para mim que, em algum momento, mesmo que mascarado, o excesso dessas substâncias em nosso corpo cobraria seu preço.
Mudança de hábitos me trouxe consciência
O tempo passou, abandonei os produtos ultraprocessados e excluío máximo que pude aqueles com aromas artificiais. Passei a cozinhar com afinco, dando vazão a um encantamento com a cozinha que vem desde cedo.
Tive filhas, me tornei vegetariano e, por fim, passei a viver no campo. E foi no contato com a terra que percebi outros pontos, antes distantes para mim. Pontos como o impacto da degradação do solo com uma agricultura e agropecuária intensiva e o domínio dos agrotóxicos.
Também constatei como aqueles salgadinhos, os mesmos que larguei duas décadas antes, continuavam enchendo a barriga de adultos e crianças que ainda desconhecem seus malefícios. Apesar de todo um avanço na divulgação de um comer mais saudável.
Algo está errado, pensei, já que a mudança dos hábitos alimentares é por si só bandeira do hoje e do amanhã. Por isso, quando me coloquei a estudar sobre o futuro da alimentação, me deparei com tópicos diversos e muito diferentes uns dos outros.
E fiquei com duas questões-chaves: como compreender o futuro da alimentação? O que realmente é imprescindível levar em conta ao pensá-lo?
Um terreiro de inovações do campo
Resolvi fazer essas perguntas a Juliana Bechara, cofundadora e sócia-administradora do Bioma Food Hub. Sua empresa se define como um coworking de inovação, geração de conteúdo e networking para empresas e pessoas. Tudo isso em prol de um sistema alimentar mais eficiente.
Para ela, não é errado tentar visualizar um futuro com inúmeras possibilidades alimentares. O foco é entender as dinâmicas do sistema alimentar, unindo as pontas de toda a cadeia, do campo ao consumidor.
“O Brasil é uma potência. Então, por que não canalizar esforços em inovar também no campo? Essa é uma maneira extremamente eficiente para evoluir e manter a agricultura familiar.”
“E também para garantir a subsistência de comunidades que há décadas trabalham nisso e são extremamente capazes de guardar a nossa biodiversidade e a saúde da natureza.”
A tecnologia na área de alimentação
São várias as propostas que devem impactar o processo alimentar nos próximos anos e décadas. Mas entre as mais factíveis, e algumas já em curso, escolhi citar as fazendas verticais.
Ou seja, espaços totalmente fechados, com andares internos em estruturas metálicas, que podem ser construídos em qualquer região de pequenas e grandes cidades.
Ali, cultivam-se hortaliças, verduras e legumes. As plantas recebem luz na frequência correta 24 horas por dia, a partir de iluminação LED.
Tais espaços podem ajudar a diminuir a distância entre os produtores e os consumidores, reduzindo o tempo gasto e o custo do transporte, barateando o preço final.
Mas essas fazendas verticais ainda poderiam ser opções de cultivo em regiões onde a agricultura tradicional encontra dificuldades.
Já em fevereiro de 2021, a startup israelense Alef Farms, usando uma impressora 3D, desenvolveu o primeiro bife de carne bovina produzido a partir de células cultivadas em laboratório.
Mais alguns anos ainda serão necessários até que esse produto possa ser comercializado. Além disso, novas foodtechs já trabalham em produtos que mimetizam o sabor, a textura, a cor e o cheiro da carne, mas feitos a partir de vegetais.
A intenção é reduzir drasticamente o abate e diminuir a emissão de gases de efeito estufa – afinal, a pecuária responde por 14,5% de todas as emissões.
O movimento da alimentação com afeto
A alimentação é uma necessidade fisiológica, mas é também uma ação social, pois significa algo importante na formação e manutenção das sociedades.
Quem soma muito nesse diálogo é a chef e pesquisadora Heloísa Bacellar, que por 11 anos, até março de 2021, manteve em São Paulo o renomado Lá da Venda.
Há bastante tempo, Helô bate na tecla de que a relação com a comida precisa ser simples. Para ela, mesmo com a tecnologia, precisamos valorizar o alimento como parte do nosso senso de comunidade. É sobre a importância de se reunir em uma mesa para dividir a refeição.
Em sua opinião, o que aconteceu durante a pandemia, em que muitas pessoas passaram a fazer seu próprio pão e a se conectar com elas mesmas na cozinha, é algo sem volta.
“Há vários futuros porque há muitos tipos de pessoas diferentes no mundo. Mas aqueles que foram conquistados, que entenderam que a comida nos conecta, levarão esse ‘movimento’ adiante.
Eles perceberam que o simples é uma delícia e que é maravilhoso fazer e comer junto”, conta Helô.
De olho no futuro e no desperdício
Para ela, também é preciso acabar com o desperdício de alimentos – só no Brasil, cerca de 26 milhões de toneladas são jogadas fora por ano.
“É fundamental que se ensine a preparar tudo o que hoje é jogado fora, que as pessoas saibam valorizar a comida. Lutar contra o desperdício é futuro também.”
Comer com consciência e enaltecer o produtor local já são metas do presente, mas tendem a vigorar no futuro. Como observa Juliana Bechara, o equilíbrio entre tecnologia e sabedoria é a nossa grande oportunidade.
“Sinto que a alimentação dá a chance de entender que a gente não só observa, mas é parte da natureza, e o que se come é um processo que pode ser benéfico para o meio ambiente e para o nosso organismo.
Se conseguirmos que a indústria trabalhe dentro dos ciclos e parâmetros naturais de clima, de tempo, de localidade e geografia, a gente conseguirá resgatar muitos dos valores que foram perdidos.
Daqui 20 anos, o ideal é usar a tecnologia para entregar a biodiversidade no prato dos seres humanos e manter os ecossistemas, com oceanos saudáveis e nossas florestas nativas como casa de outras espécies.”
Sobre a série De Olho no Futuro
A proposta dessa série é investigar o que se tem pensado para temas centrais da vida humana, como trabalho, educação, alimentação, clima do planeta, meio ambiente, moradia e sociedade. Compreendendo o passado e o presente, espiamos o futuro com olhos mais disponíveis para viver essas mudanças e criar um mundo melhor.
A SÉRIE DE OLHO NO FUTURO recebe consultoria da Oxygen (@oxygen.brasil), uma plataforma de conteúdo em inovação. Com seu olhar apurado para a curadoria de tendências, a fundadora Andrea Janér tem como missão compartilhar conteúdos para ajudar empresas e pessoas a entender para onde cada transformação poderá nos levar.
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GUSTAVO RANIERI é jornalista, escritor, padeiro e oficineiro. Acredita em todo trabalho de formiguinha e, por isso mesmo, tem esperança de que um dia acabe a matança dos trilhões de animais abatidos por ano para o consumo humano, assim como chegue ao fim o reinado dos conservantes, emulsificantes e estabilizantes
Conteúdo publicado originalmente na Edição 231 da Vida Simples
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