Ao nos apresentarmos em uma roda de conversa com desconhecidos é comum falarmos: “Meu nome é fulano e trabalho com tal coisa.” Mas por que a primeira observação que temos sobre nós mesmos é a importância da profissão? O trabalho faz parte de quem somos e, sim, diz muito sobre nossas escolhas e valores. Mas somos também nossas histórias, paixões, afetos, hobbies, sonhos e tudo aquilo que nos move além do que fazemos para receber o salário no final do mês.
Me coloco como exemplo: amo escrever, viajar, sou comunicativo, empático e curioso – talvez por isso tenha me tornado jornalista. No entanto, a profissão que escolhi não me resume. Sou mais que isso: o equilíbrio entre minhas qualidades e defeitos que formam quem realmente sou e moldam minha personalidade.
Esse aspecto social e cultural vem de longe. Muitos sobrenomes, especialmente os de origem europeia, derivam diretamente das profissões. Schumacher (sapateiro), Smith (ferreiro) e Schneider (alfaiate) são alguns exemplos clássicos. Mas agora vamos voltar para 2025.
Qual o seu propósito de vida?
Convenhamos, falar sobre si não é uma tarefa simples. Identificar características e qualidades que não estejam atreladas à vida profissional é um desafio. A rotina, muitas vezes maçante, ajuda a explicar por que isso acontece.
“É difícil enxergar essas qualidades porque na grande maioria das vezes chegamos ao final do dia e olhamos apenas para as nossas falhas, os nossos defeitos, o que ficou por fazer. Nunca efetivamente para os pontos positivos da nossa vida, Para quem a gente é além do trabalho”, afirma a psicóloga Larissa Fonseca.
CEO da Academia Brasileira de Inteligência Comportamental, Edson Carli avalia que no atual contexto de sociedade o princípio da vida em grupo se tornou a utilidade. “Portanto, passamos a colocar a atividade no centro das nossas vidas porque pessoas sem utilidade são rapidamente esquecidas.”
Ele ilustra essa percepção com um exercício: pegar o celular, ligar para qualquer pessoa da sua lista de contatos e fazer apenas uma pergunta: “Como vão as coisas?” A maioria das respostas será sobre a importância da profissão na rotina. E, dessas, 90% virão acompanhadas de algum tipo de queixa, geralmente relacionada à sobrecarga e ao cansaço.
Esse comportamento, de acordo com Carli, revela dois aspectos importantes da forma como construímos nossa identidade. Primeiro, a tentativa constante de mostrar que somos úteis e produtivos; segundo, o desejo de acolhimento.
“A causa raiz desse comportamento é porque focamos nossa identidade na carreira. Deixamos de pensar em nosso propósito de vida. Basta ter uma atividade, me dedicar a ela e serei aceito. Simples e indolor, ainda que nem sempre eu faça o que amo fazer.”
Sua identidade vai além da importância do trabalho
Psicóloga com abordagem cognitivo-comportamental, Rejane Sbrissa concorda que esse hábito é a crença de que a profissão define quem somos, nossa identidade e o valor que temos para a sociedade.
“Por meio da da profissão, há um indicador de status e valorização. No mundo contemporâneo, as pessoas estão cada vez mais desconectadas de si mesmas e dos relacionamentos humanos. A profissão se torna o meio que encontram para demonstrar competência, empatia e formar sua identidade com base em valores importantes como seres humanos.”
Segundo Rejane, o maior impacto é o de despersonalização. O indivíduo se transforma na importância da própria profissão. “Pessoas que baseiam toda sua identidade no profissional acabam por não saberem se relacionar de outra forma. Não se sentem competentes para ter uma relação amorosa, familiar ou social de qualidade. O resultado? Enfiam a cara só no trabalho e se relacionam somente por meio dele.”
E essa cultura afeta a saúde mental. Pode gerar ansiedade generalizada, estresse, depressão burnout. “A pressão por metas, desempenho, produtividade e a necessidade de reconhecimento é muito prejudicial à saúde mental.”
Como identificar quem sou para além da profissão?
Não existe uma receita para isso, cada pessoa entende mais de si do que qualquer outro indivíduo. No entanto, há caminhos coletivos que tornam essa identificação mais fácil.
A psicóloga Larissa Fonseca traz uma dica interessante: pedir para um amigo falar sobre nós, apontar quais características temos e enxergar isso a partir de um outro olhar. Às vezes, até fazer uma espécie de diário ou seguir um programa de autoconhecimento também ajuda nesse processo.
De acordo com ela, é mais simples identificar nossas características e qualidades por meio do trabalho porque esse é um campo racional e objetivo. A performance profissional oferece parâmetros claros de avaliação, como metas, entregas e reconhecimento, o que facilita a percepção do nosso valor e das nossas habilidades.
“Quando falamos de autoconhecimento, o processo se torna mais subjetivo e analítico, pois envolve emoções, sentimentos e aspectos internos que nem sempre são fáceis de acessar.”
Para Carli, esse processo passa pela valorização das atividades de “não profissão” e das relações interpessoais para além do trabalho:
“Quantas vezes você disse aos seus pais que eles são incríveis? Quantas vezes você disse, essa semana, que ama seu filho ou filha? Quantas vezes você olhou no espelho e deu parabéns para você pelo dia, pela semana ou pelo ano até aqui? Tudo isso são reflexões e hábitos importantes de valorização do não profissional.”
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