‘Diagnóstico de transtorno é condição, não rótulo’
Psiquiatra destaca a importância do apoio durante o tratamento. Nos últimos dez anos, SUS regista aumento de 39,5% no número de internações por transtornos de humor

Enfrentar um diagnóstico de transtorno psiquiátrico é um momento desafiador para o próprio paciente, para a família e para os amigos. Além disso, é preciso lidar com o olhar da sociedade muitas vezes marcado por julgamento e preconceito. No entanto, há caminhos para lidar com situações delicadas de saúde mental e bem-estar emocional, tanto individualmente quanto no convívio social.
Nos últimos dez anos, o SUS (Sistema Único de Saúde) registrou aumento de 39,5% no número de internações por transtornos de humor, saltando de 46 mil em 2014 para 64 mil em 2024. As condições estão entre o CID (Classificação Internacional de Doenças) F-30 e o F-39, sendo eles: episódio maníaco; transtorno afetivo bipolar; episódios depressivos; transtorno depressivo recorrente; transtornos de humor persistentes; outros transtornos do humor; transtorno do humor não especificado.
Os números foram extraídos pela reportagem da Vida Simples do Tabnet, ferramenta de dados do DATASUS (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde), do Ministério da Saúde.
Diagnóstico de transtorno não define quem você é
De acordo com a psiquiatra da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) Roberta França, os números sugerem dois cenários: aumento do debate sobre saúde mental na sociedade e possível falha no processo ambulatorial – o que acaba em necessidade de internação. Mas, para além destas análises, dois outros fatores são fundamentais: o paciente não ser julgado e ter o apoio para enfrentar o diagnóstico de transtorno.
Ela afirma que o essencial é compreender que a doença psiquiátrica é “uma condição, não uma condenação”. “Caso contrário, transformamos as pessoas em seu diagnóstico de transtorno. Elas deixam de ser seres humanos, com suas histórias, com suas questões, com seus movimentos, e passam a ser portadoras de uma patologia. E isso é reduzir muito as pessoas, é colocá-las em um lugar muito ruim, porque você as estigmatiza”, ressalta.
“Quando colocamos a doença psiquiátrica no lugar de importância que merece, mas sem atribuir a ela um peso condenatório, tudo se torna mais fácil, mais leve, mais compreensível. E, a partir daí, as pessoas, ao compreenderem e entenderem melhor a situação, passam também a perceber a real importância do tratamento, especialmente de um tratamento contínuo”, acrescenta a psiquiatra.
Roberta cita como exemplo outras condições de saúde que não são estigmatizadas, como a hipertensão, a diabetes, a cardiopatia, a osteoporose, as doenças reumatológicas e os tumores. Um duplo entendimento entre doença física e o diagnóstico de transtorno psiquiátrico.
“Você não diz para um paciente que ele está hipertenso porque não tem força de vontade para se alimentar bem ou fazer atividade física. Também não diz que alguém tem diabetes porque não tem força de vontade. Mas, quando se trata de depressão, ansiedade, transtorno de humor ou pânico, muitas vezes ouvimos exatamente isso: que a pessoa está assim porque não quer sair daquele lugar.”
Essa lógica, segundo Roberta, é “injusta e cruel” com quem sofre de um transtorno. Além de reforçar o estigma, esses questionamentos “desconsideram a complexidade dessas condições” e dificultam o entendimento sobre a necessidade de um tratamento adequado que, em muitos casos, é “prolongado e exige cuidados contínuos”.
“O tratamento pode ser de longo prazo, e até mesmo para o resto da vida, igual outras condições físicas que não são julgadas. Mas para além de remédios, o paciente também pode contar com outras formas de tratamento: a psicoterapia, a atividade física, uma alimentação equilibrada. Todos esses fatores ajudam a melhorar o estado de humor e a qualidade de vida como um todo”, afirma.
A importância da rede de apoio
O ambiente ao redor de uma pessoa diagnosticada com algum tipo de transtorno é determinante para a continuidade e a eficácia do tratamento. De acordo com a psiquiatra, “quanto mais presente e acolhedora for a rede de apoio, maiores são as chances de o paciente manter o acompanhamento regular”.
“Quando o paciente está em um ambiente onde é cobrado por força de vontade, onde escuta que está com frescura ou preguiça, isso o leva a uma sensação de menos valia. Ele começa a acreditar que é fraco, que não quer melhorar, que não faz nada direito. Esse tipo de cobrança pode agravar ainda mais o quadro psiquiátrico”, alerta Roberta.
Por outro lado, uma rede de apoio que acredita no tratamento, na terapia e na recuperação fortalece emocionalmente o paciente. “Quando há suporte da família, de amigos, de pessoas que o acolhem, ele se sente amparado para atravessar momentos difíceis. Isso facilita o efeito dos medicamentos, melhora a estabilidade emocional e permite que o paciente enxergue com mais clareza e tranquilidade a sua condição”, explica Roberta.
Mais diálogo, menos tabu
A discussão sobre saúde mental ainda é um tabu na sociedade, mas já foi muito pior. Falar sobre o tema parecia algo de quem tinha um transtorno irrecuperável, que precisaria ficar internado e isolado da sociedade para o resto da vida. Lutar contra essa visão não é recente. Inclusive, é importante lembrar do movimento antimanicomial.
Na análise da psiquiatra Roberta França, o aumento de 39,5% no número de internações por transtornos de humor no SUS em dez anos está diretamente relacionado justamente à maior discussão social sobre saúde mental.
“A gente tem mudado essa concepção. O debate mais amplo sobre a importância do cuidado com a saúde mental fez com que o olhar para isso se tornasse mais atento. Começamos a ter um número maior de pessoas se preocupando e buscando ajuda. E pessoas que também incentivam outras a buscar apoio, apontando para elas a necessidade de cuidado. Essa mudança de paradigma, esse entendimento de que a doença mental pode atingir qualquer pessoa e de que todos precisam de ajuda, parece fundamental para esse aumento.”
Os perigos do autodiagnóstico
Apesar de ser uma importante forma de disseminação de informações sobre saúde mental, a internet também pode contribuir negativamente para o diagnóstico de transtorno e o tratamento adequado. Nos últimos anos, uma série de posts e testes nas redes sociais se popularizaram e abriram portas para o autodiagnóstico.
Uso das redes sociais pode ser nocivo no diagnóstico de transtorno
“É uma vertente de hiperdiagnóstico. É como se todo mundo tivesse que ter uma doença psiquiátrica. Você tem que estar encaixado em alguma patologia. Ou você é depressivo, ou você é bipolar, ou você tem TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), entre outras . É como se fosse bacana ter algum diagnóstico psiquiátrico”, afirma a psiquiatra.
Segundo a médica, esse ambiente digital precisa ser olhado com cautela, principalmente porque envolve pessoas em situação de extrema vulnerabilidade emocional. “Muitas vezes, elas vão buscar ouvir aquilo que, naquele momento, faz mais sentido. Elas buscam ouvir aquilo que parece fácil, que parece mais imediato, parece mais lega. No entanto, nem sempre vai promover o tratamento correto que ela efetivamente precisa”, finaliza Roberta.
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