Escalar: conheça os aprendizados que esse esporte nos traz
O ato de encarar um paredão e ter a coragem de enfrentá-lo, subindo um passo após o outro, pode levar não apenas ao topo, como também à libertação da crença de insuficiência. Conheça a história de Cristina Hirashima, idealizadora do Projeto Ártemis, que utiliza a escalada como instrumento terapêutico para empoderar mulheres.
Uma amiga me contou que foi com sua sobrinha a um parque de diversões e lá elas se depararam com um desses paredões de escalada para crianças. A menina, que estava comemorando os seis anos no local, decidiu tentar a subida logo de cara. Ela, no entanto, não conseguiu dar mais do que três passos e desistiu, com medo. Saiu decepcionada, segundo soube. Olhava para os lados e dizia que também queria ter conseguido, igual às outras crianças. Minha amiga tentou consolá-la, mas foi em vão. Ficou o tempo todo no parque relembrando o episódio. Antes de irem embora, no entanto, pediu para irem novamente até a parede. Exausta depois de um dia de brincadeiras e disposta apenas a “tentar uma última vez”, a menina focou sua energia na escalada e – para a alegria de todos – conseguiu. Desceu toda orgulhosa do seu feito, perguntando aos tios se eles tinham visto ela lá em cima. Falei para essa minha amiga, no final da história: “Podia se tornar uma lembrança dolorosa, mas ela conseguiu reverter isso para uma bela experiência de superação”.
Assim como essa garota, quantos de nós não têm vontade de enfrentar seus próprios paredões internos e atingir o topo, indo além de seus traumas e limitações? Vida Simples abordou o tema da escalada na edição 257 por meio da incrível jornada de Izabel Duva Rapoport. Seus aprendizados terapêuticos com o esporte não seriam possíveis se não fosse por sua amiga Cristina Hirashima, que apresentou a ela essa prática.
Cristina Hirashima atua há 30 anos em consultório atendendo a pacientes com demandas físicas e emocionais a partir do olhar da fisioterapia, da morfoanálise e da psicossomática psicanalítica. Moradora de São Paulo e mãe de dois filhos, descobriu no e trekking e na escalada em rocha o seu refúgio terapêutico. Depois de 15 anos de prática, durante a pandemia a ideia de integrar a sua experiência em consultório com a escalada em rocha ganhou força. O sonho saiu do papel e se transformou no Projeto Ártemis, que vem transformando a vida de muitas pessoas por meio da superação de limites.
Confira a nossa conversa:
Como surgiu a ideia de fundar o Projeto Ártemis? Quais foram as inspirações por trás dessa iniciativa?
Nas sessões em consultório atendia muitas mulheres que passavam por desafios em relação a abusos sofridos, baixa autoestima e desconexão com a própria essência e força interior. Pensava em atender grupos para potencializar o trabalho terapêutico ao invés do atendimento individual. O consultório estava pequeno. A minha vivência pessoal na escalada em rocha sempre foi muito terapêutica no sentido de autoconhecimento corporal e emocional. Então pensei, por que não utilizar a escalada como uma experiência de forma terapêutica?
Como a escalada pode ser utilizada como uma ferramenta terapêutica? Quais são os principais benefícios que as participantes do projeto têm relatado?
Logo de início as participantes trazem muitas questões, como por exemplo: “Não tenho força”, “preciso emagrecer antes para participar”, “tenho medo””, acho que não é para mim”, “não tenho tempo para participar neste momento”.
Os trabalhos de consciência corporal, respiração, meditação, contato com os sentimentos e pensamentos e a movimentação na rocha ou na parede indoor durante a escalada mobilizam memórias e crenças limitantes que quando acolhidas e interpretadas no momento adequado, ressignificam padrões de comportamento e surge então um novo olhar para a vida e até uma nova perspectiva de antigos traumas.
Os benefícios são as respostas a estas questões: “nem precisei fazer tanta força para escalar”, “nem posso acreditar que consegui escalar até aqui no topo”, “fazia muito tempo que eu não fazia algo por mim”, “incrível a sensação de estar nas alturas”.
Na primeira edição, uma das participantes informou que tinha muito medo de altura. No entanto foi a participante que escalou com maior fluidez na rocha. Interpretei para ela no final da experiência: “Me parece que você não tem medo de altura. Na verdade, talvez você tenha medo da sua potência!”. Foi emocionante!
Como você seleciona as participantes do projeto? Existem critérios específicos ou é aberto a todas as mulheres interessadas?
O projeto foi pensado principalmente para as mulheres que nunca escalaram antes. Mas nada impede que as mulheres que já tiveram alguma experiência antes participem também.
Além da escalada, quais outras atividades ou abordagens terapêuticas são integradas ao programa do Projeto Ártemis?
Como minha formação vem da fisioterapia e da especialização em morfoanálise e psicossomática psicanalítica, a observação dos movimentos corporais, a escuta analítica e as vivências de consciência corporal estão integradas durante toda a experiência através de exercícios e do meu acompanhamento do grupo.
Como você vê a importância da presença feminina na escalada e em esportes de aventura em geral? Quais são os desafios enfrentados pelas mulheres nesse contexto?
Os desafios enfrentados pelas mulheres nos esportes de aventura são muito semelhantes aos que todas as mulheres se deparam no dia a dia em nossa sociedade.
A importância da presença feminina na escalada traz, na minha opinião, a oportunidade de olhar para os aspectos femininos do esporte. Por exemplo, a movimentação corporal mais fluida, a intuição na decisão do próximo movimento, a introspecção, a técnica mais detalhada, enfim, o olhar e a solução da energia do feminino diante da via a ser escalada.
O Projeto Ártemis promove a integração de princípios do masculino saudável e do feminino sagrado. Poderia explicar um pouco mais sobre essa abordagem e como ela se reflete nas atividades e interações do projeto?
Quando se fala em escalada em rocha ou indoor, muito provavelmente surgirá a imagem de um homem musculoso pendurado na rocha. A força física dos músculos e ossos que são energias mais masculinas colabora sim para a prática. Mas não é somente ela que participa da ascensão indoor ou na rocha.
A consciência e fluidez corporal, a movimentação de determinadas regiões do corpo onde as mulheres anatômica e fisiologicamente têm mais mobilidade (quadris por exemplo), a precisão em cada detalhe da utilização dos dedos nas agarras… Todos estes aspectos mais sutis fazem parte do universo da energia feminina.
A integração de todos os aspectos citados vai de encontro ao equilíbrio destas energias tanto em mulheres como em homens. Afinal, todos temos estas energias masculinas e femininas internamente.
Não é uma questão das mulheres se fortalecerem fisicamente para serem tão fortes ou mais fortes do que os homens e esquecerem o lado da escuta interna intuitiva, ou a beleza da dança dos movimentos na escalada. Assim como a ideia não seria propor que os homens ficassem mais sensíveis às sutilezas internas deixando de lado a importância da força física.
A integração destas energias acontece durante a prática da escalada. Não é somente a força dos músculos que faz a participante subir a rocha, é também a força interna do feminino que funciona como motor na ascensão.
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