A importância da solitude em meio às convivências
Quando abrimos caminho para a solitude da nossa individualidade, compreendemos melhor o que sentimos e desejamos, além de cultivar o verdadeiro eu
Em questão de horas, Daniele de Andrade saiu da primavera de São Paulo e entrou na solitude do outono de Barcelona. A estação do ano coincidia com o estado emocional da analista de comunicação. Ela precisava deixar algumas de suas folhas internas cair para que no lugar nascessem outras, mais viçosas e fortes. Nos últimos tempos, tinha vivido como uma árvore frágil por falta de cuidados, já que usava toda a energia que tinha com quem amava e nunca sobrava tempo para ela.
Abraçou ainda mais essa tarefa de cuidadora quando o pai foi embora. Era só uma adolescente, mas sentiu que era sua a responsabilidade de manter a família em pé.
Ficou tão próxima da mãe e do irmão mais novo que passava todo o tempo livre junto deles. Uma relação sem espaço para segredos e momentos de solitude.
Daniele sempre foi financeiramente independente, porém não gostava de ficar sozinha. Estava sempre com a família, os amigos ou o namorado de longa data.
Mas o peso de garantir o bem-estar de todos a deixava exausta. A resistência dela desabou quando seu casamento ruiu, dois anos depois de oficializado. Como uma árvore que passou por intempéries demais, ficou doente.
“A depressão é um copo de água que vai enchendo toda a vida. Uma hora ele transborda. O meu transbordou no divórcio. Mas foram, na verdade, centenas de coisas. Dentro delas, descobri que foram gotas no meu copo a minha necessidade de cuidar de questões que não dependem de mim, quando deveria estar ocupada em resolver a minha vida.”
Da reclusão à solitude de sair sozinha
Depois de um ano de sofrimento, tratamento e reclusão, decidiu fazer um intercâmbio para aprimorar o espanhol.
Apesar de já falar o idioma, Daniele estava assustada, pois não costumava ir nem à padaria sozinha. Assim que desembarcou em Barcelona, dirigiu-se ao pequeno apartamento de dona Joaquima, onde ficaria hospedada. Se sentiu acolhida por aquela viúva de cerca de 70 anos, que a recebeu como se fosse da família.
A convivência com a mulher despida de preconceitos, que não dava satisfação para ninguém, não tinha celular e se mantinha firme mesmo tendo perdido um filho na semana anterior, ajudou a jornalista a repassar suas emoções a limpo.
“Éramos só nós duas. Foi muito importante o tempo que eu e a Quima vivemos juntas porque ela me ajudou muito, me mostrando os prós e os contras da minha transição e o quanto podia ser bom para mim”, lembra.
O medo e a solidão de Daniele duraram apenas um dia dos 20 em que permaneceu na Espanha, no final de 2019. Ao constatar que a família estava bem sem ela, a analista de comunicação relaxou e percebeu que era agradável estar na própria companhia.
Enquanto conhecia pessoas e lugares turísticos, foi descobrindo coisas sobre si que jamais tinha imaginado. Foi ali que ela deixou os medos caírem no chão e renovou suas folhas internas.
Solitude: um compromisso com a individualidade
Sentindo-se forte, voltou determinada a ter outra vida, sem se cobrar tanto. Hoje mora sozinha e não vê problema em viajar sem alguém ao lado ou entrar num restaurante para jantar, pedir uma mesa para uma pessoa e tomar um bom vinho enquanto degusta o ambiente.
Esse é o efeito de quem mantém um compromisso sério com a individualidade. O problema é que muitas vezes nos deixamos de lado e aceitamos que as obrigações e os relacionamentos interpessoais preencham todo o tempo que temos.
Quando agimos assim, nossa árvore fica enfraquecida e, ao ser balançada por ventanias, dá a impressão de que vai tombar.
Nesses momentos, não conseguimos perceber que a nossa raiz é forte o suficiente para nos sustentar quando precisamos.
Só quem confia que a morte de algumas folhas é necessária para que brotem outras novas consegue encontrar dentro de si saídas, ideias, possibilidades e formas diferentes de viver.
Essa consciência acaba limpando dos nossos olhos a camada grossa de temores que nos impede de ver o tamanho da nossa resiliência.
A sós com a própria essência
Tão enriquecedor quanto trocar afeto e experiências com pessoas é ser um frequentador assíduo no mundo de dentro, que é maior e mais cheio de recursos emocionais do que pensamos.
Quanto mais habitamos nele, mais nos sentimos seguros e preparados para as situações que caem no nosso
colo todos os dias.
“Precisamos de um espaço nosso. A convivência com outras pessoas é fundamental nas nossas vidas, mas, quando ela passa a existir de uma forma muito intensa, pode nos privar desse nosso momento. Que é o de preservar a nossa identidade, de ter um silêncio com nós mesmos e pensar nas nossas coisas mais individuais”, afirma Márcia Mansur, professora de psicologia da PUC-Minas.
A individualidade, ela continua, tem a ver com a identidade, com a nossa forma de ser no mundo. Embora o coletivo seja como um livro incrível de onde vamos extraindo os muitos pedacinhos que nos formam, cada um de nós se constrói de um jeito particular e único.
Quando estamos a sós conosco, o nosso eu brilha. Mas se deixamos a nossa individualidade em último plano, esse eu fica ofuscado e tende a se perder dentro de nós.
Reservar um tempo de solitude não é egoísmo nem sinal de autos-suficiência. Também não é fechar a porta para quem é próximo ou está perto.
É, isso sim, criar um espaço sagrado para que as conversas interiores sejam mais reveladoras e produtivas.
Convivência intensa não é sinal de conexão
Dividir o espaço dedicado a si e aos outros requer disciplina e planejamento, pois eles vivem se invadindo. As circunstâncias da vida por vezes levam as pessoas a viver coladas umas nas outras.
Por falta de opção, por costume, para evitar desentendimentos ou por medo de desapontar quem amam, elas mergulham numa convivência tão simbiótica que falta espaço até para respirar.
Pouco a pouco vão entrando num terreno fértil para conflitos, irritabilidade, impaciência e intolerância.
O livro A Coragem de Não Agradar (Sextante), escrito por Ichiro Kishimi e Fumitake Koga, especialistas em psicologia adleriana, traz um diálogo entre um jovem e um filósofo sobre o assunto. “Para formar bons relacionamentos, é preciso manter certo grau de distanciamento”, afirma o sábio.
Ele ensina ao jovem que o ponto de partida para um convívio saudável é fazer uma separação de tarefas, que permite desembaraçar os fios complexos dos nossos relacionamentos.
E lembra que, ao contrário do que muitos de nós pensamos, fios embaraçados não têm a ver com uma conexão forte e verdadeira. É só uma mistura que a qualquer momento pode resultar num caldo indigesto.
Ficar muito tempo isolado também não é saudável, pois pode nos afundar em desânimo e solidão. Se estamos desatentos, a vida nos empurra para um desses extremos e não saímos de lá.
“Tudo o que é exagerado não é bom. Do mesmo jeito que um isolamento exacerbado causa problemas, a convivência de forma muito intensa também”, diz Márcia.
Fazer silêncio e dedicar-se a si: uma prática em desuso
“Silêncio, para eu me lembrar de tanta coisa que sonhei. Encontrar todas as folhas que juntei. Por essa estrada que me traz até a mim.”
Os versos da música “Silêncio”, interpretada pela cantora Maria Bethânia, mostram que às vezes precisamos de uma temporada de calmaria, para que os nossos pensamentos e sentimentos se assentem.
Em outras fases, ficamos mais carentes de companhia. E tudo bem. Nossa balança emocional pode pender mais para um lado ou outro.
O importante é não ficarmos ausentes de nós mesmos, achando que não merecemos a nossa atenção. Ou que não tem problema interromper nossos momentos por uma mensagem que apita no celular ou porque alguém nos chama.
É um desafio nos colocarmos como prioridade nessa vida acelerada. Mas ele vai ficando mais fácil à medida que o colocamos na agenda.
“Precisamos nos esforçar para parar um pouco e respirar mais profundamente, pensar em nós mesmos, tomar um banho mais demorado, ouvir uma música sozinhos. Devemos nos esforçar porque, se a gente vai com a maré, não tira esse tempo”, frisa Márcia.
Isso dentro do que é possível em cada dia. Às vezes a falta de prática com a nossa individualidade é tanta que ficamos incomodados, sem saber o que fazer com ela.
Nessas horas, o melhor a fazer é se deixar levar pelas vontades e interesses que brotam quando a gente cala a impaciência.
Solitude ajuda a despertar criatividade
Quando nos conhecemos, naturalmente ficamos bem. Sozinhos ou acompanhados. Então começam a aflorar capacidades antes desconhecidas, como a criatividade.
A escritora Virginia Woolf deu o título Um Quarto Só Seu para um de seus livros, referindo-se a um lugar simbólico onde as pessoas pudessem se sentir seguras e confortáveis para escrever suas obras, além de encontrar inspiração para tal.
Esse cômodo privativo, inundado de silêncio e reflexões, é perfeito para fortalecer a autonomia. Foi nesse lugar que Daniele encontrou, entre suas folhas juntadas, como cantou Maria Bethânia, seus tempos de bailarina.
E descobriu que essa estrada a levava até ela mesma. Desde então, em cada movimento de dança que faz, imprime a delicadeza da liberdade. Como uma borboleta.
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SIBELE OLIVEIRA curte seus momentos de solitude. É neles que ela silencia os barulhos de fora e desfruta da paz que encontra dentro de si.
Conteúdo publicado originalmente na Edição 233 da Vida Simples
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