Tolerância
Até onde devemos ter tolerância com as coisas e as pessoas? Esse é, acredite, um dos aprendizados mais importantes e fundamentais.
Era uma vez um godo. Isso mesmo, um godo, parente distante dos visigodos e dos ostrogodos, povos bárbaros germânicos que invadiram a Península Itálica durante a Baixa Idade Média. Um sujeito baixo e atarracado de cabelos loiros e testa curta. A história conta também que, além de sujo e malvestido, o godo ainda era pobre de espírito. Enfim, meio bobo. Não era fácil engolir a presença daquele ser por muito tempo. Pois esse homem, longe de casa, resolveu pedir abrigo num mosteiro. Você imagine o rebuliço que isso poderia ter provocado na época: acolher um invasor, um bárbaro, para morar e conviver com os monges, muitos deles cidadãos cultos, e alguns nascidos nas melhores famílias do Império Romano. Ninguém teria coragem para tanto.
Acontece que Bento, o abade do mosteiro e chefe dos monges, não pensava como a maioria, que estava sempre pronta a deletar um godo de sua vida sem maiores remorsos. Apesar de jovem, o abade era sábio, e viu uma grande oportunidade para todos ali irem além de si mesmos e exercitarem a tolerância com aquele primo do Shrek. Além disso, fazia parte da tradição daquela ordem religiosa acolher a todos que batessem em suas portas, indistintamente. E Bento lhe deu abrigo. Ofereceu comida, cama limpa e, mais tarde, um trabalho. Uma tarefa bem difícil lhe foi destinada: ceifar os espinheiros perto de um lago para preparar um terreno para o plantio.
Assim, o nosso ogro foi trabalhar com plantas repletas de espinhos, da manhã ao entardecer, sob a firme decisão de tornar aquela terra um campo limpo. Mas, um dia, ao cortar as moitas de espinhos, o bárbaro perdeu a lâmina da sua ferramenta: ela voou longe, e foi cair no meio de um lago próximo. Para o godo, aquilo significava um completo horror. Na Idade Média, instrumentos agrícolas eram preciosos, e os monges poderiam querer mandá-lo embora pelo estrago. Avisado, o abade Bento foi ao campo. Encontrou o nosso amigo com o rosto lívido e o cabo da foice sem lâmina nas mãos. Talvez ainda por compaixão, Bento, conhecido como São Bento nos dias de hoje, tomou o cabo das mãos do pobre homem e entrou no lago. Mergulhou a foice na água num só golpe. Quando a retirou, a lâmina estava novamente encaixada no cabo. Foi um dos seus milagres, segundo os relatos de São Gregório Magno – muitos outros feitos miraculosos de Bento se seguiriam depois. Essa história faz parte da palestra do abade André Martins, do Mosteiro da Ressurreição, de Ponta Grossa (PR). Mas que lições ela traz? E o quanto elas são úteis para nós?
Todos somos godos
Quem, como o godo, já não sofreu rejeição? Ou sentiu o sabor amargo da exclusão? Foi tratado com sarcasmo e ironia, sem falar da maledicência lhe dirigida pelas costas? Se isso aconteceu com você, então pode dar um passo e se colocar na fileira dos godos. O difícil mesmo será encontrar alguém que não esteja nessa fila. Todos nós fomos godos em alguma ocasião. Talvez por isso tenhamos tanto horror deles: nos lembram que somos iguais, que temos a mesma condição de dependência do julgamento alheio. E ninguém gosta de ser candidato à dolorosa possibilidade de ser rechaçado.
Só que nos recusamos a admitir essa condição: godos são sempre os outros. A razão principal dessa cegueira obtusa é porque, na maior parte do tempo, somos pobres de espírito, realmente. Somos godos com sérias limitações inerentes aos godos. Nossa verdadeira natureza é pura e adamantina, é verdade, mas parece que temos uma certa preferência em chafurdar na lama sem conseguir enxergar o que está bem diante dos olhos. Só que dá para sair dessa condição atávica. É possível respirar de vez em quando fora desse jugo limitante. Deixar a vida mais fluida, não perder tempo com bobagens, acrescentar mais sabedoria e objetividade ao viver. Recusar-se a uma visão simplista, reconhecer a complexidade das situações humanas e evitar carimbos para rotular pessoas e circunstâncias ajuda muito. Supera-se o limitado olhar dualista, do bom e do ruim, do gostar e do não gostar. Enfim, a vantagem de ter uma apreciação mais integrada da existência é que ela nos conduz a uma vida mais justa, sábia e harmônica. Uma vida menos goda.
Abranger, incluir e acolher
Coisas inacreditáveis se aprendem num mosteiro. Ouvi a história que começa esse artigo durante um retiro no Mosteiro São João, das monjas beneditinas, em Campos do Jordão (SP). Era a época das eleições e havia muita intolerância de ambos os lados. O candidato de um grupo era o godo do outro. Sutilmente, Irmã Maria de Fátima, que conduzia o retiro, fez ver a todos o quanto a tolerância, o acolhimento e a inclusão são revolucionários, e como eles podem conduzir a transformações profundas no coração das pessoas.
Uma monja beneditina como ela ainda vive sob as regras do sábio abade Bento, 1500 anos depois. É seu dever ser mais tolerante e acolhedora com todos. “Num mosteiro, por exemplo, convivem pessoas de muitas culturas, origens e modos de vida diferentes. Estamos diante da diversidade humana todos os dias, o tempo todo. E não dá para sair e dar uma voltinha para desanuviar. Estamos fechadas por muros, e temos de aprender a incluir umas às outras em nome de algo que nos faz ultrapassar a nós mesmas: o amor a Cristo.” Amar, ela diz, é ir além de nossos limites. “Isso não é fácil. Temos de ultrapassar a tirania do ego, e de sua subjetividade, em primeiro lugar.”
E ela explica como é esse processo: “O ego só faz o que gosta. E gostar é muito diferente de amar. O gostar é subjetivo, espontâneo, natural. Já o amor é objetivo e envolve disposição e vontade irredutíveis de acolher o outro mesmo quando todas as circunstâncias indicam o contrário. Para isso, temos de ultrapassar nossas suscetibilidades e limites, isto é, nosso ego, para abranger a outra pessoa como ela é”. Aliás, os verbos abranger, incluir e acolher são bem melhores do que tolerar e suportar para dar o sentido correto do que é a tolerância. Estão mais ligados a decisões conscientes e não a algo que nos é forçado a engolir. “Quando encontramos alguém pela primeira vez, pode surgir uma simpatia. Dizemos: gosto de fulano. E veremos muitas qualidades nele. É um ponto de vista completamente subjetivo”, diz Irmã Maria de Fátima. Já se for uma antipatia, nos tornamos intolerantes, rígidos, e tudo naquela pessoa irá nos desagradar. É igualmente subjetivo, instintivo. “O gostar é instável, melindroso e superficial: um dia se gosta e, se o outro faz algo que consideramos errado, no outro dia já não se gosta mais. Porém, o que se pede é ir além dessa superficialidade.”
Para São Bento, um mosteiro é uma escola onde se pode aprender a amar os que são diferentes de você e a não se deixar dominar pela subjetividade. Um espaço onde a tolerância pode ser praticada diariamente. “Ali, sou obrigada a sair de mim mesma, do que eu acho, do que eu quero, do que eu espero, e mudar o foco para procurar compreender o que o outro acha, quer e espera”, diz a monja. É uma conversão total de direção. Um cavalo-de-pau. Isso significa também que, em vez de impor minha vontade, vou ter de aprender a ser humilde, não impositivo. “Quando isso se torna natural, acontece uma completa libertação interna: finalmente se está livre do jugo do “eu gosto” e do “eu não gosto”, a grande amarra que impede nosso crescimento, tanto psicológico quanto espiritual”, explica. E essa proposta de mudança de olhar serve para qualquer pessoa.
No começo, a disposição em ir além de si mesmo para incluir as peculiaridades do outro pode ser fonte de sofrimento e conflito interno. Muitas vezes não é fácil tolerar, e esse é um grande aprendizado para toda a vida. Mas, depois, com o redirecionamento do olhar subjetivo para o objetivo, é um grande alívio. Um bálsamo. Deixamos de ser tão melindrosos e intolerantes para acolher com afeto. E isso nos liberta de nós mesmos. Não se depende mais do ego, e da sua subjetividade, para ser feliz.
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O humor cura a alma
E a intolerância consigo mesmo? Está cada dia pior. Padrões inalcançáveis de beleza são apresentados pela mídia, por exemplo. Critérios altos demais também são colocados em relação ao sucesso, à realização pessoal e até para a espiritualidade. E quem vive à margem de parâmetros desumanos? Vou falar de um grupo que está nesse caso: os portadores de câncer da face e pescoço. Para a cura desses pacientes, às vezes são necessárias cirurgias agressivas e mutiladoras. E o resultado pode ser a recusa da autoimagem. Como pegar na mão dessa pessoa e fazê-la aceitar a si mesma na sua atual condição? Além da medicação necessária, há uma outra resposta eficaz: com a ajuda do humor.
Esse foi um dos trabalhos do humorista e terapeuta Roberto Caruso no Grupo Gesto, uma ONG de São José dos Campos (SP) que lida com a recuperação de pacientes atingidos pelo câncer nessas áreas do corpo. A aproximação dele é sempre delicada: primeiro chega Roberto de cara limpa, e conversa com o paciente. Depois, ele usa um bicho de pelúcia ou desenha uma carinha em sua mão para fazer as brincadeiras iniciais. Quando o paciente consegue sorrir em uma delas, Roberto já sabe: atingiu um espaço interno, formado quando a criança tem de 4 a 10 anos, no qual a liberdade de rir é permitida sem julgamento. Um momento em que ela esquece de si mesma e ri. Dali por diante a tarefa fica mais fácil. Ele tem consciência de que, se o paciente riu uma vez, poderá rir outras vezes. Então, depois, poderá realizar sua tarefa de recuperação da auto imagem com o auxílio de alguns dos seus inúmeros personagens, como o palhaço Pipoca Quente, a dra. Vavá, uma psicoterapeuta muito sexy de 1,90 m e 110 kg (altura e peso de Roberto) ou o improvável Wilson Gilson Sol, personal trainer de “ginástica letárgica”. Rir alivia, cura dores profundas e relaxa. Além de abrir a possibilidade de tocar em áreas difíceis e delicadas, nas quais o paciente estava fechado, e estimular a resiliência.
Roberto é um terapeuta social. Tem formação em psicologia psicossomática, além de outras na área de psicologia, e a apurada sensibilidade de um artista para tratar da questão. Para ele, considerar o corpo na sua atividade é fundamental. “Existem dias que você acorda mais intolerante, por uma série de fatores físicos. Ou tem fases em que você está mais intolerante por problemas hormonais. Isso tem de ser levado em conta, e é preciso tratar dessas causas ao lado de uma terapia que trabalhe com a psique”, explica ele.
Nos relacionamentos
E como vai a sua tolerância nas relações mais próximas? “Os relacionamentos mais duradouros e profundos sofrem pontos de cansaço e desgaste, nos quais ficamos mais intolerantes. E isso é natural”, diz Marcelo Henrique, reitor de Filosofia do Seminário de Taubaté, em São Paulo. Ele tem uma grande experiência nesse tema: atendeu durante anos paroquianos que vão até ele para falar dos seus dramas pessoais de relacionamento em casa, com os cônjuges, com os pais, filhos, parentes ou no trabalho. Diante de uma crise, Marcelo aconselha calma e prudência. “Crises podem ser pontuais e toleradas com o tempo. É preciso reconhecer que relacionamentos longos podem envolver momentos de conflito.” A questão é: vale a pena fazer um esforço e superá-los? Qual o custo emocional disso? O relacionamento tem mais pontos positivos do que negativos? “É sempre bom fazer essa avaliação mais isenta, talvez com o auxílio de outra pessoa, com formação para isso”, diz ele. Ou alguém mais ponderado e distante do conflito.
Mas o principal é levar em conta que crises podem acontecer, sim, e que elas podem ser ultrapassadas com mais tolerância e um sentido maior de apreciação pelo outro e pelo relacionamento. Ver a situação com mais distanciamento e menos emoção pode causar isso. Mas ele também adverte: não se deve tolerar o que é intolerável, abusivo, agressivo e nocivo ao corpo ou à alma. “Também há um limite para a tolerância. Como diz o filósofo Karl Popper, não se deve tolerar o intolerável, sob o risco de aumentar a intolerância do intolerante”, afirma Marcelo Henrique.
Também há de se preparar para o diálogo sobre novas bases do relacionamento, com mais calma e racionalidade. Existem muitos livros sobre comunicação não violenta que podem ajudar nisso, além de exercícios e práticas que auxiliam no relaxamento, como meditação ou ioga. Respire fundo, então. Expanda o seu coração para acolher o que parecia impossível antes. Mas, preste atenção: só se valer a pena!
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