Profecia de criança e babá nos Estados Unidos
Passar de ser cuidada pelos meus pais no Brasil para o papel de cuidar de mim mesma e de mais duas crianças nos Estados Unidos foi um baque que, aos poucos, virou lições marcantes de independência, coragem e responsabilidade.
Passar de ser cuidada pelos pais no Brasil para o papel de cuidar de si mesma e de mais duas crianças nos Estados Unidos foi um baque que, aos poucos, virou lições marcantes de independência, coragem e responsabilidade.
Nunca sonhei em viver nos Estados Unidos, mas já moro aqui há 13 anos, em uma cidade da Flórida chamada Tampa, assim como tampa de panela mesmo. De acordo com uma antiga vizinha, aos 5 ou 6 anos eu disse que um dia me mudaria para a “América”. A memória me falha, mas o que me lembro bem é de pequena enrolar a língua tentando falar inglês. Também ouvi muitos hits internacionais dos anos 80 sem entender uma palavra, mas curtindo bem o som.
Olhando em retrospectiva, a cultura americana sempre esteve presente na minha vida, principalmente através dos filmes. Flash Dance e Dirty Dancing, por exemplo, eu assisti dezenas de vezes por causa da minha paixão pela dança e pelos romances. À medida que fui crescendo, no entanto, a conexão com a cultura brasileira é que foi se fortalecendo. Comecei a dar preferência à música nacional e a dançar forró como uma boa filha de nordestino. Aos 26 anos, no entanto, a “profecia” de me mudar para a “América” bateu à minha porta.
Primeira experiência
Na época, já formada em jornalismo, comecei a fazer assessoria de imprensa para uma agência de intercâmbios. E foi assim que descobri o programa “Au Pair”. Aprendi que dava para morar aqui, nos Estados Unidos, por um ano, na casa de uma família anfitriã cuidando de crianças, assim como uma babá que vive na casa onde trabalha. Resolvi me candidatar para o programa com aquele friozinho na barriga.
Afinal, a vontade de morar fora do país se misturou ao medo de deixar a segurança da casa dos meus pais, a cidade de São Paulo onde vivia desde que nasci e a minha primeira língua, o português. Por sorte, segui minha intuição e disse sim para minha primeira viagem internacional e para minha primeira experiência no exterior.
Em 2006, cheguei a Clearwater, uma cidade praiana aqui da Flórida, famosa pela beleza e pelo clima – faz sol o ano todo. Na minha nova cidade, passei a integrar uma família bem diferente da que deixei no Brasil. A daqui era formada por um casal de classe média bem tranquilo com uma filha pequena, a Acácia, de 2 anos, e um pré-adolescente, o Joey, de 11 anos.
Crédito: Sean Pavone | IStock
Difícil Falar Inglês e Romance Americano
Passar de ser cuidada pelos meus pais no Brasil para o papel de cuidar de mim mesma e de mais duas crianças nos Estados Unidos foi um baque que, aos poucos, virou lições marcantes de independência, coragem e responsabilidade. A dificuldade de me comunicar com a minha família anfitriã (host-family) tornou o aprendizado do inglês uma “questão de sobrevivência”.
Diariamente, as diferenças culturais iam se apresentando e só me restava me adaptar a elas. Churrasco passou a ser de hambúrger e salsicha com pão. O café expresso e o pão francês deram lugar ao café fraco, a panquecas americanas e cereais matinais.
Sentia saudades de arroz e feijão diariamente, mas porque não me metia a cozinhar, fui me acostumando à praticidade americana das comidas congeladas e de caixinhas, dos sanduíches e das comidas compradas fora. Só naquela época que finalmente entendi o privilégio, agora perdido, de ter tido a minha mãe cozinhando para mim por 26 anos da minha vida.
Conviver com liberdade
Durante esse período de tantas descobertas e adaptação, conheci meu atual marido, o Brian. Nos encontramos ao acaso numa casa noturna de Tampa. Pouco depois, começamos a namorar. Ele era bem diferente dos meus antigos namorados brasileiros: morava sozinho desde os 17 anos, cozinhava a própria comida, lavava louça, dobrava roupa, cuidava da própria casa.
Para minha surpresa, quando eu saía sozinha com minhas amigas, ele dizia “have fun!” (Divirta-se!). Era uma liberdade e uma confiança que eu desconhecia até então, mas que até hoje dou muito valor. Sabia que tinha achado o cara ideal para casar, mesmo sem estar procurando.
Mas como o meu plano era de voltar ao Brasil assim que meu programa de intercâmbio terminasse, fiz questão informá-lo que nosso relacionamento tinha data de validade.
Crédito: Benkrut| IStock
Volta ao Brasil e aos Estados Unidos
Quando meu programa de intercâmbio chegou ao fim, me trouxe confusão: não queria deixar os Estados Unidos e o namorado, mas estava pronta para voltar ao Brasil e rever a minha família e amigos. Brian e eu decidimos manter o namoro à distância.
Voltar para São Paulo foi um choque. Meus olhos pareciam treinados para encontrar defeitos por toda a cidade. As ruas esburacadas. Os moradores de rua. A poluição. O medo de ser roubada. De repente, São Paulo parecia ainda mais barulhenta, perigosa e suja do que me lembrava.
Não antecipei o desafio que seria voltar ao Brasil depois um ano fora, nem o de morar na casa dos meus pais de novo e de trabalhar com assessoria de imprensa. O tempo foi passando, mas já não parecia me adaptar mais ao meu próprio país. Brian e eu começamos a cogitar a minha volta aos Estados Unidos.
Família na terra do Tio Sam
Minha condição foi: só se a gente se casar. E foi isso que aconteceu. Já estamos juntos há 14 anos. Temos dois filhos nascidos aqui. A Sophia com sete anos e o Phillip com cinco. Os dois adoram arroz e feijão, falam Português fluentemente e gostam de dançar assim como a mamãe. A dança é uma paixão que tenho o privilégio de compartilhar com meus filhos e com a comunidade daqui de Tampa. Já faz oito anos que dou aulas de Zumba, em diferentes academias da cidade. Ano passado, com a pandemia, fiz treinamento de Yoga e virei professora também.
Esses treze anos aqui me “americanizaram”. Pelo menos é o que diz minha família do Brasil. Eu prefiro dizer que hoje sou uma mistura boa de Brasil com Estados Unidos. Como panqueca americana e bacon de café da manhã, falo inglês fluente e aprecio a pontualidade e a comunicação mais direta dos americanos. Por outro lado, faço questão de cozinhar um feijãozinho com linguiça de vez em quando, assar um pão de queijo à tarde para as crianças e dançar sempre com muita alegria axé, samba e funk nas aulas de Zumba. E nas festas de aniversário das crianças, brigadeiro não pode faltar. Está vendo que mistura?
Ana Paula Rubenstein (nos Estados Unidos) e Ana Paula Boer da Silva (nome oficial no Brasil) é jornalista de formação, professora de Zumba e Yoga em Tampa, Flórida, e escritora nas horas vagas. Ama a segurança, praticidade e organização do povo americano e sente falta da comida, do forró e do “calor humano” brasileiro.
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