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O que aprendi em um retiro
Edvaldo Armellini
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Durante uma semana, um fotógrafo brasileiro participou de um encontro de meditação pelas vítimas da Segunda Grande Guerra. O retiro acontece todo mês de novembro em Auschwitz, o mais famoso campo de concentração, marcado por histórias e lembranças

Manhã de domingo, acordo às 5 horas e vejo pela janela do hotel uma chuva mansa caindo no centro de Berlim, capital alemã. Minha perna dói, não sei porquê. Esse incômodo, aliás, será meu companheiro constante até o fim desta longa viagem. Depois vem a preocupação: não posso me atrasar, preciso chegar logo em Auschwitz.

Eu tinha passado as três últimas semanas atravessando o país, visitando os campos de concentração, como parte de um projeto fotográfico pessoal. Agora era hora de conhecer o mais famoso deles fora da Alemanha. Esses lugares se tornaram locais de respeito, homenagens e aprendizado. O que seria diferente ali?

Mas ali eu não iria só fotografar, mas também participar de um esperado encontro coordenado pelo Zen Peace­makers, uma organização internacional que realiza retiros com algum cunho social e promovendo a paz. O de Auschwitz é focado em três pilares: não julgamento, testemunho e ações baseadas em amor.

O encontro dura uma semana e, durante boa parte do tempo, as pessoas meditam sentadas, o zazen, na principal plataforma de trem em Birkenau ou Auschwitz II. Sempre ora em silêncio, ora recitando o nome de algumas das vítimas. Além disso, há caminhadas, vigílias – principalmente nas barracas que eram destinadas às mulheres e às crianças –, e alguns serviços memoriais em diversas religiões. Outra atividade é a participação nos chamados conselhos, grupos criados para que as pessoas dividam suas experiências e sentimentos.

Os primeiros dias

Ao chegar, percebo que existem alguns padrões no grupo: pessoas que participam do retiro há vários anos, gente com parentes ou conhecidos que estiveram ali e aqueles com ligações religiosas das mais diversas – não apenas judeus. Mesmo sendo budista, a minha principal motivação não era religiosa. Além disso, é muito raro um brasileiro participar desse retiro, portanto não me enquadrava muito bem nos grupos, o que me deixou livre para navegar por todos.

No café da manhã, na segunda, as conversas são animadas com todos se apresentando. E esse clima se mantém durante o trajeto até Oświęcim, onde fica Auschwitz. Perto da chegada, o silêncio toma conta do ônibus e o clima de excursão termina.

Vamos direto ao Auschwitz I, que é muito menor que Birkenau e serviu de prisão para dissidentes políticos e prisioneiros de guerra, principalmente do exército russo e opositores ao regime nazista. Ali, havia também prisioneiros judeus, mas quase a totalidade foi enviada diretamente para Birkenau.

O que me impressiona logo de início é a preservação das instalações. É possível perceber e sentir toda a opressão nas cercas e nas paredes dos alojamentos. Isso faz com que um sentimento de angústia tome conta de mim. Não apenas pelo que o campo traz, mas pela história que a guia conta. A perna dói.

Após passarmos pelo museu e assistirmos a um vídeo sobre a libertação dos presos, começamos a caminhar pelas pequenas ruas do interior do campo. Paramos na câmera de gás, a única remanescente ali, pois os nazistas destruíram as outras durante a retirada. Genro, um dos responsáveis pelo nosso retiro, falou a respeito do desespero e o que deveria ser para homens, mulheres e crianças perceberem que não havia mais esperança após aquelas portas serem trancadas.

Logo em seguida, para minha surpresa, as portas foram fechadas e a luz apagada. Um silêncio pesado se instalou. Escutei, então, o choro de um rabino que estava bem próximo. E logo depois o choro dele e de outras pessoas se misturou às orações. Acredito que naquele instante cada um sentiu e viu os seus próprios sentimentos e fantasmas se instalarem. A luz foi acesa e saímos. Meus sentidos ficaram mais atentos e a dor se foi.

De volta às pequenas ruas do campo, me sentia cada vez mais frágil. Passamos por locais de execução, pela cozinha, por celas e por vários pontos onde pessoas eram torturadas e mortas pela simples razão de existirem, terem uma religião e uma pátria. Tudo ali serve para destruir a identidade.

E eu senti isso de uma forma intensa, principalmente ao ver o rastro que os prisioneiros foram obrigados a deixar: roupas, malas, joias e até fios de cabelo. Tudo isso faz parte de uma exposição que mostra o que era tirado das pessoas durante esse processo. Nos dias seguintes, nos momentos de meditação, a sensação de opressão e fragilidade retornava. Então meditava para deixar o meu “eu” um pouco de lado e perceber o momento. A perna continuava a doer.

O segundo dia, terça, começou com a primeira reunião do conselho, que é formado por dois monitores, a polonesa Ola Kwaiatkowska e o americano Ari Pliskin, mais cinco membros – incluindo eu – e uma convidada muito especial: Janina Iwanska, que aos 14 anos foi feita prisioneira e confinada exatamente em Birkenau. Ela não foi exterminada, como quase a totalidade das crianças, pois lhe foi dada a função de cuidar dos meninos e das meninas menores, que também foram poupados para servirem de cobaias em diversos experimentos.

Durante a sessão do conselho, a instrução era bem simples: deveríamos falar e ouvir com o coração, não podíamos interromper o outro, nunca julgar e, se fosse citado, poderia responder apenas na sua vez de falar. Aproveitei para contar da estranheza com relação ao episódio da câmara de gás e da opressão no campo.

Depois, seguimos novamente para Auschwitz e entramos pelos fundos. Ficamos toda a manhã conhecendo o que restou das fábricas de extermínio e o cruel processo que as pessoas passavam nesses locais terríveis. Entramos em uma casa que era conhecida como “a sauna”, onde os prisioneiros que não seriam mortos eram “limpos”. Foram prestadas homenagens em várias línguas e em diversos ritos religiosos.

Nesse momento foi possível sentir-me parte do grupo. É interessante como a função de religar as pessoas fica mais evidente quando esses ritos religiosos são realizados de forma autêntica. O sentimento é de “sou um em todos”.

Após o almoço fomos para o campo masculino, onde as barracas são mais rústicas, feitas de madeira e, portanto, existem poucas remanescentes. Iríamos meditar ali (zazen) e entoar os nomes de algumas das vítimas. Fazer zazen em um local com o chão irregular, sem zafu – almofada usada para sentar e meditar – no frio, com pessoas falando nomes, olhando para uma parede apodrecida que deixava passar um vento cortante, era algo muito incômodo para mim.

Eu ainda não tinha percebido, mas o meu “eu” estava berrando pelo conforto de uma sala de meditação, e nem que o desconforto era mais interior, criado pelo tumulto da minha mente. Eu estava com medo de perder minha identidade, assim como havia ocorrido com as vítimas que passaram por aquela barraca. Por isso fiz tudo menos meditar. A perna doía e a minha mente a usou como desculpa.

Segunda parte

Eu seria a segunda pessoa a falar no conselho de quarta-feira, mas escolhi ficar em silêncio. Os outros me seguiram, o que deixou os monitores apavorados pensando que não estávamos confortáveis para nos expressar. Mas isso não era verdade. O desconforto estava em mim, não no conselho.

Dessa vez entramos no campo pelo portão principal. Pegamos cadeiras, bancos e zafus. Caía uma chuva leve e fria. Todos estavam protegidos, situação diferente dos que pisaram por lá na época da guerra. Só que a minha mente entrou em pânico. E eu me perguntava: como vou fazer zazen ao ar livre, debaixo da chuva e sem uma parede para olhar? Não vou colocar o meu Rakusu, que representa o manto de Buda! Ele vai ficar molhado, é novo, eu acabei de costurar e usei poucas vezes. Eu, eu, eu, eu…

Por conta disso, o primeiro período de zazen foi horrível. E eu seguia me questionando: o que realmente estou fazendo aqui? Então, finalmente, refleti: ou lido com isso ou nada vai fazer sentido, principalmente se eu estiver constantemente buscando por algo exterior, como conforto e uma parede para olhar. Antes de tocar o sino do segundo período de meditações, eu já havia colocado o meu Rakusu.

Pensei: se vou me molhar, ele também vai, somos um, sem parede ou qualquer outro apoio. Respirar e aproveitar o que vier e absorver. As condições melhoraram, a chuva deu uma trégua, tivemos tempo livre e a a perna estava melhor.

Mas minha perna cobrou o preço do dia cheio, a dor se tornou muito forte e andar passou a ser bem difícil. No dia seguinte, acordei às 5 horas com uma forte câimbra e mal conseguia andar. Tomei um banho quente, passei arnica e fiz alguns alongamentos. Mas o efeito foi pequeno.

Com muito custo segui para o local onde o conselho se reúne e, no caminho, tomei uma decisão: não iria ao campo naquele dia, preferia ficar na hospedagem cuidando da minha perna para que tivesse condições melhores na sexta-feira e pudesse fotografar. Disse isso para o conselho com muita frustração, pois não tinha feito nenhuma foto de Auschwitz e não havia garantia de que estaria bem no dia seguinte. Não consegui dizer isso sem derramar muitas lágrimas. Janina quebrou então o protocolo e começou a falar diretamente comigo.

Com a tradução de Ola, ela me disse que eu deveria aceitar essa dor e trabalhar para conseguir o que quero e não me lamentar. Se fotografar o campo é importante, eu deveria criar condições para que isso acontecesse. Mas nunca lamentar ou parar de tentar.

Ela me contou que, antes de ser presa, tinha os mesmos sonhos de qualquer menina da época: ter um marido, filhos e levar uma vida boa. A guerra veio e lhe tirou a oportunidade de ter filhos. Então ela adotou as crianças que foram colocadas sob seus cuidados no campo e se esforçou para criá-los da melhor forma possível, com todo amor maternal que possuía. Passei o dia cuidando da perna. Pensei em desistir e arrumar uma forma de voltar ao Brasil. Mas então me lembrava de Janina e continuei.

Na sexta-feira acordei melhor, mas ainda sentia dores. Fui assim mesmo ao campo para fotografar. Todo o meu foco estaria nessa atividade. No meu trabalho, busquei imagens que representassem ciclos de vida e morte nos campos de concentração.

E, desde que cheguei a Auschwitz, pensei que seria muito difícil ter isso lá. Mas o céu diz o contrário e, depois de uma semana de tempo encoberto e chuva, a sexta-feira começou com um céu de um azul maravilhoso. As árvores estavam mais radiantes e as imagens dançavam na minha frente de forma leve e solta.

O que esses dias de retiro mudaram em minha percepção? Aprendi que um local como Auschwitz tem a carga pesada das histórias que ali aconteceram. Mas aquele campo e tantos outros existiram antes e vão continuar a existir mesmo se destruírem as instalações remanescentes.

Percebo que não há o antes e o depois, apenas o agora. E que precisamos deixar a mente parar de governar, colocar o eu de lado e sentir que a chuva gelada faz parte do momento. O redor existe para influenciar o que acontece com você, e você influencia o redor. É uma eterna dança.

Edvaldo Armellini é fotógrafo e budista. E percorreu os mosteiros americanos em busca de paz. 

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