Comida é arte?
Pratos milimetricamente montados e autorias de receitas disputadas a faca. Afinal, o cozinheiro é um artista?
Pratos milimetricamente montados e autorias de receitas disputadas a faca. Afinal, o cozinheiro é um artista?
Depois de seis meses de apresentações e eventos, 145 países participantes e de mais de 20 milhões de visitantes, a feira universal Expo 2015, realizada em Milão, se encerrou no final de outubro como a maior exposição do mundo em torno da comida.
Nunca antes o tema da alimentação tinha conquistado o palco de uma mostra tão significativa. “Isso mostra como a comida ganhou representatividade no cenário contemporâneo, não apenas em questões sociais e políticas mas também estéticas”, bradou o New York Times, em uma análise do evento, cujo tema era “Alimentando o planeta, energia para a vida”.
A estética da comida
Curioso o jornal americano ter levantado a questão do aspecto estético da comida, assunto que ainda gera discussões e quase nenhum consenso. Na Expo Milão, muitas das exibições mostravam um viés artístico sobre a alimentação, talvez em sintonia com os tempos atuais, quando as redes sociais estão repletas de pratos de comida bem produzidos e o culto da celebrização de chefs ao status de “gênios” e “artistas” se tornou tônica vigente.
Uma das mostras em cartaz em Milão a fazer uma abordagem artística da gastronomia veio daqui: Alimentário – Arte e Construção do Patrimônio Alimentar Brasileiro, com curadoria de Felipe Ribenboim e Rodrigo Villela, teve exibições no Rio e São Paulo antes de aterrissar na capital italiana, e surgiu da ideia de mostrar uma identidade estética da nossa gastronomia por meio de obras de arte, documentos históricos, objetos, pinturas e até fotos de pratos de chefs brasileiros celebrados no cenário atual.
As artes culinárias sempre estiveram inseridas nas belas-artes, como expressões de uma cultura local e única. “É mais comum olhar o alimento deslocado do prato, nas telas de natureza-morta, em arranjos de cabelos de Carmen Miranda ou num telefone de lagosta de Salvador Dalí”, diz Felipe Ribenboim.
Obra efêmera
É preciso compreender que a alimentação e seus rituais carregam consigo histórias, expressões e traços marcantes de um determinado grupo. Daí a aproximação da arte e da gastronomia. “Muitos chefs traduzem suas histórias pelos seus pratos. Quando um prato é criado com um propósito, quando é pensado e elaborado, o tratamento do preparo e finalização, ele é uma obra. Como é comestível, é efêmero.”
Muito da discussão da abordagem da comida como arte tem seu foco aí. Enquanto a arte, como a literatura ou a pintura, é mais livre, a gastronomia tem no paladar do comensal sua limitação: é feita para agradar, passa mais por uma necessidade fisiológica do que de contemplação. “Um prato deslocado de um contexto provocativo, analítico ou de reflexão deixa de ser uma obra e volta a ser apenas um alimento”, resume Ribenboim.
Outros chefs renomados, como Niki Nakayama, que tem origem japonesa e busca em suas raízes a inspiração para seus pratos, questionam o limite entre a arte e a comida. Mas em uma coisa todos concordam: é preciso emocionar através do sabor
Na moldura do prato
Desde a nouvelle cuisine (movimento de chefs da culinária francesa que pregava uma naturalidade e uma apreciação estética da gastronomia), a comida passou a vir empratada à mesa em uma forma volumétrica, tridimensional, atenta aos detalhes da apresentação para que os comensais pudessem, também, “comer com os olhos”, como se convencionou dizer. A comida ganhava seu status de “arte” – com aspas mesmo.
Nos anos 2000, Ferran Adrià inovou na estética com sua culinária tecnoemocional espanhola, criando mais que apreciações plásticas, pequenas esculturas e obras de formas e texturas que estarreciam uma plateia carente de espetáculo. Nenhum outro chef foi tão seguido. Um apelo de artes passou a ser servido à mesa emoldurado pelos pratos. Mas, para muitos especialistas, não eram, em suma, obras de arte em si.
A barreira em considerar a gastronomia como obra de arte continuou construída, sem ruir. “Vejo como uma resistência saudável da chamada ‘alta cultura’ à banalização da arte no sentido de torná-la uma mercadoria vulgar”, acredita o sociólogo da alimentação Carlos Alberto Dória.
Arte Culinária?
“O conceito de ‘arte’ não faz parte da gastronomia, exceto no sentido de ‘artesanato’. No senso comum, basta ser bonito para ser considerado artístico. E a mídia acabou surfando nesse entendimento vulgar da arte, fazendo repercutir o conceito e aplicando-o ao fazer culinário”, afirma.
Para Dória, a arte tem requisitos que a gastronomia não tem. “Por exemplo, qual o objeto da arte gastronômica? Muitos semioticistas dizem que ela não tem. Outra característica da arte é a sua universalidade, a sua apropriação em qualquer tempo ou espaço.
A gastronomia é, antes, um capítulo do consumo de mercadorias em uma dada sociedade, com seus recortes de classe, suas modas, suas formas de exclusão… E a arte não exclui”, diz ele. A gastronomia se tornou uma forma de status nesses tempos gourmetizados.
Receita de arte
O chef italiano Massimo Bottura, considerado um dos mais prestigiados do mundo, não tem dúvida disso. Comer sempre foi uma referência de cultura para ele: desde as receitas que aprendeu dentro de casa até, depois, já como chef, as criações que passou a desenvolver com um viés modernista, trazendo uma nova visão para a culinária italiana, sempre conhecida por seu tradicionalismo.
Desde que começou a ter mais conhecimento de artes plásticas, Bottura mudou sua relação com seu papel de chef. “Percebi que posso me explicar através dela”, afirma ele, no ótimo documentário Chef’s Table, no ar pelo Netflix.
Uma de suas receitas clássicas, conhecida como “Oops, I dropped the lemon tart” (ops, eu derrubei a torta de limão, em tradução livre) – que tem uma forte carga estética –, é servida esparramada, como se tivesse caído no chão – e foi inspirada numa obra de Joseph Beuys, chamada de Capri Battery, em que o artista plástico criou uma instalação na qual uma lâmpada é plugada a um limão (a acidez da fruta é capaz de acender a luz).
Por que poderia ser a obra de Beuys considerada arte e a de Bottura não? Em outra de suas receitas, ele compõe um prato em que cinco tipos de Parmigiano-Reggiano, queijo típico de sua região, a Emiglia-Romana, com tempos de cura diferentes (entre 24 a 50 meses) são servidos em diversas preparações. “Essa receita não é, acima de qualquer coisa, uma pintura abstrata da Emiglia-Romana?”, questiona.
Este é o famoso Oops! I Dropped The Lemon Tart, citado no texto. Criação de Massimo Bottura, que se inspira em obras das artes plásticas para compor o desenho da comida no prato. A história de Bottura é contada na série Chef’s Table, do Netflix
Criações e autorias
Mas a propriedade intelectual de uma receita é outro dos fatores que enfraquecem o argumento da comida como arte. Quase nenhum país tem uma legislação sobre a autoria de uma receita. A quem cabe a criação de um tiramisù, de um filet ao Moraes, de uma coxinha? As receitas são, por si mesmas, reprodutíveis. Eu mesmo posso fazer uma preparação de um chef renomado (ou até mesmo a torta de Bottura) e servir na minha casa ou até em meu restaurante sem lhe pagar royalties ou direitos autorais.
Por aqui, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes de São Paulo criou um serviço de registro que garante a cozinheiros a autoria de suas criações. Isso porque, ao contrário de órgãos que registram livros e músicas, não há nenhum que registre receitas. No Brasil, órgãos como INPI (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual), responsável pelo registro de marcas, e a Biblioteca Nacional, que registra obras intelectuais, não fazem patente de receitas.
“Escritores são proprietários das suas histórias, fotógrafos têm direito às próprias imagens. Chefs, não”, afirma Nathan Myhrvold, autor do livro Modernist Cuisine: The Art and Science of Cooking (sem tradução por aqui), que registrou mais de 100 patentes das receitas criadas para seu livro. Se a receita nem sequer tem um autor comprovado, como poderia ser considerada uma obra de arte e o chef, um artista?
Artesãos
O catalão Joan Roca, chef do El Celler de Can Roca, restaurante considerado o número 1 do mundo, segundo a revista inglesa Restaurant, tem uma resposta: “Os cozinheiros não são artistas, são artesãos comprometidos com a criatividade. Algo próximo a um ourives. Nosso maior objetivo é emocionar, e isso nos aproxima da arte”, afirmou certa vez. Transformar o ouro bruto em formas delicadas tem, sim, seu valor artístico. Assim como fazer de alguns limões uma torta capaz de se tornar uma refeição inesquecível. Algo que não é qualquer um que é capaz de fazer, né?
Rafael Tonon é jornalista de gastronomia e também um adepto confesso da arte de comer bem.
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