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Cadernos de receitas
fotografia Carol Gherardi | produção de objetos Lia Guimarães | produção culinária Lu Neves
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Escritas à mão e guardadas com apreço, essas anotações são registros preciosos de sabores e aromas, e também do jeito de perceber o mundo

Minha mãe, Ligia, é cozinheira de mão cheia e me ensinou a apreciar a comidinha feita em casa. Ela é pernambucana. Então, na casa da infância, a gente comia carne de sol, feijão de corda e outras delícias nordestinas.

Mas, quando se mudou para São Paulo, no final da década de 1960, foi apresentada a outras gostosuras. E aprendeu a fazer bolo de chocolate com a Arivaldete, cuscuz paulista com a Yara, brigadeirão com a Alacyr, pessoas que fizeram, em algum momento, parte da vida dos meus pais – e foram figuras presentes na minha meninice.

E as receitas desses pratos – e de tantos outros – estão nos cadernos de receitas da minha mãe, com suas folhas amareladas, marcadas pelos anos em que foi companhia constante junto ao liquidificador, a batedeira ou ao fogão. Caderno que, de tempos em tempos, era passado a limpo por uma prima que tinha “letra bonita”.

E que trazia também uma porção de recortes de receitas publicadas em revistas, latas de leite condensado, e outras embalagens. Esse universo da cozinha, da mágica que é misturar o ovo com a farinha e depois vê-lo se transformar em um bolo, me encanta.

E o caderno de receitas sempre foi um objeto de fascínio, um guia de como fazer coisas incríveis, capazes de satisfazer não apenas a fome, mas também a alma. Bolo de creme de leite, uma das especialidades da minha mãe, é meu pequeno ninho em formato de doce.

Interessante foi descobrir que esse encantamento não era só meu, mas de uma porção de outras pessoas, que herdam as anotações da mãe, da tia, da sogra, da avó ou até da bisavó. E descobrem ali um universo, como um tesouro escondido de receitas e de um tempo.

Na trilha da história

Foi nesse caminho – e movida pela curiosidade – que conheci Débora de Oliveira, historiadora que mergulhou por três anos nos registros culinários de diferentes épocas. O estudo virou tese de mestrado, defendido na Faculdade de História da USP e, depois, se transformou em livro: Dos Cadernos de Receitas às Receitas de Latinha – Indústria e Tradição Culinária no Brasil (Senac).

Débora é neta de Silvina, paraibana, mulher guerreira, dona de casa, empreendedora, que sempre cozinhou para a família. Foi na casa da avó Silvina que ela apurou o paladar. “Comida é afeto, é descobrir o que você gosta e o que lhe faz bem”, analisa Débora.

Além do afeto, a historiadora percebeu que a vida na cozinha e as anotações culinárias são um reflexo do momento histórico e social de um período. Ou seja, para entender tudo isso é preciso olhar para o caminhar da sociedade: por que, durante décadas, as mulheres colavam receitas nas últimas páginas? Por que anotavam os nomes das pessoas ao lado?

Durante a colonização, a cozinha era território das escravas. E o trabalho era pesado: matar, depenar, limpar e preparar no fogão a lenha. Nada era registrado. Mas feito no olho, no saber antigo, e na tradição oral passada de mãe para filha. E esse ‘modo de fazer’ tem influência indígena, africana e portuguesa.

Depois do fim da escravidão, em 1888, as coisas mudaram. As famílias se estabeleceram na cidade e ficaram mais distantes da roça, onde o frango era morto de manhã, temperado e assado para o almoço. Outro ponto: se não haviam mais escravos, quem iria colocar a mão na massa? Existiam as criadas, claro, mas quem disse que as mulheres sabiam ensiná-las ou mesmo orientá-las sobre o preparo dos pratos? Eram moças de fino trato, educadas para servir aos maridos, e preparar os doces finos, como os delicados camafeus.

Foi quando a necessidade falou mais alto que surgiram os primeiros livros de culinária e as mulheres passaram a anotar seus aprendizados. “Outros acontecimentos também modificaram o comportamento na cozinha. Em 1910, surgiu o primeiro fogão a gás por aqui, no palácio do governo. Então, todo barão do café queria ter um fogão assim. Mas nem a esposa, nem a criadagem sabiam mexer naquilo”, conta Débora.

A companhia de gás trouxe, então, professoras da Europa. Foram elas que ensinaram como usar o novo acessório, a acertar o ponto e o tempo de cozimento. Depois, veio o auge da industrialização e a chegada dos alimentos processados, enlatados e dos aparelhos ditos modernos, do liquidificador ao micro-ondas.

Como estratégia de divulgação vieram as receitas nas latinhas, os livros de refeições preparadas em micro-ondas e assim por diante – é nesse momento que as embalagens foram parar nos cadernos das donas de casa. Segundo Débora, basta uma análise nesse acessório para saber a época em que foi escrito: pela grafia (se xícara é com “x” ou com “ch”), pelos recortes, pelo tipo de receita (cada época tem os pratos da moda).

O caderno que a professora de história Anna Cristina Figueiredo tem guardado em casa é um exemplo disso. Ele data de 1907 e pertenceu à Lavínia Bueno Teixeira de Camargo, esposa do político João Teixeira de Camargo, primeiro prefeito de Assis.

“Era minha bisavó”, orgulha-se Anna. “É muito legal notar as quantidades absurdas de ingredientes. Fui fazer uma receita e deu rocambole para um batalhão”, lembra. “É que, antigamente, as famílias eram bem maiores e meu bisavô recebia muitas pessoas, como correligionários, parentes… Os farináceos estão em libra e quase todas as receitas usavam produtos da terra, como araruta, coco, milho, ovo. Quase nada com chocolate”.

Outro ponto interessante é perceber que nos registros mais antigos não havia o ‘modo de fazer’, apenas os ingredientes. Não era preciso qualquer explicação já que cozinhar fazia parte da vida das mulheres.

De avó para neta

Cozinhar para a família era a rotina de Martha Brandão Cocchiaro, avó da jornalista Liliane Oraggio. Martha morreu em 2008, com 99 anos e meio. Ela morava nos Estados Unidos, para onde se mudou na década de 1960, em busca do sonho americano. “Chegando lá, ela foi ao mercado e comprou um caderno para passar seu antigo exemplar de receitas a limpo. Criou um índice e um anexo, onde colocava os recortes de revistas”, conta Liliane.

Nas folhas pautadas, a escrita é caprichada: tem o biscoitinho da dona Dilica, o bolo de fubá da dona Martha (receita que ela mesma criou), o pavê da Jane. “Quando chegou aos 80 anos, ela me deu o livro”, conta Lili. “Minha avó nasceu em 1908 e casou aos 18 anos. A vida dela acontecia na cozinha, com o marido e os filhos (três meninos) fazendo todas as refeições em casa.

O caderno de receitas era um reflexo das pessoas com quem convivia, dos lugares que frequentava, das festas que ia”, diz. E continua: “ela era muito encantada com a industrialização. Um dia, ligou dos Estados Unidos só para contar que tinha comprado uma sorveteira e que a gente precisava provar aquilo”. Nesse ponto da conversa, Lili deixa escorrer algumas lágrimas. “É muita lembrança”, diz, enquanto acaricia as páginas amareladas.

Percebo, então, que a palavra xícara, nos tempos de dona Martha, era grafada com “ch”. Lili emenda: “um dia, passeando pela Vila Madalena (bairro paulistano), vi uma fachada de comércio com fotos de páginas de um caderno de receitas. Era a mesma letra da minha avó. Descobri que as imagens eram do acessório da avó do dono do estabelecimento”. E, depois de alguns minutos de bate-papo, desvendou-se o mistério: tanto Martha quanto a outra senhora foram alfabetizadas na mesma época e escola, a tradicional Caetano de Campos, em São Paulo. Coisas que essas anotações nos revelam.

A professora universitária Sabrina Neves sabe muito bem disso. Ela descobriu um lado da avó que desconhecia ao folhear o caderno herdado dela. “É de 1941. As receitas usam onça como unidade de medida. Algumas são tradição na família como o Bolo Casamenteiro e o Rio Grande que precisam ser feitos juntos pois um leva as claras e o outro as gemas”, conta.

Mas a surpresa mora nas últimas páginas. “Foi ali que encontrei rabiscos com o nome dela e o do meu avô, ela colocando várias opções para o nome de casada. É lindo ver, era tempo da Segunda Guerra, ela vivia na Paraíba e ele servia a marinha no Rio, logo depois ele foi para a batalha, mas voltou e se casaram. Minha vó era muito austera, e só quando faleceu e eu vi seu caderninho de receitas da juventude foi que me dei conta de como ela havia sido uma adolescente sonhadora como qualquer uma”, conclui. 

Gosto de infância

A letra feita com esmero e as lembranças que essas receitas fazem brotar dentro da gente serviram de inspiração também para a decoração e o cardápio do restaurante carioca Volta. “Minha avó materna tinha uma escola de artes culinárias para mulheres. Ela escrevia os fascículos e meu avô ilustrava”, contra Mahine Dorea, uma das sócias do lugar.

Esse material e outros registros serviram como ponto de partida para o negócio. “O objetivo era olhar para dentro das nossas casas, da memória afetiva, só que com técnicas culinárias novas”, explica. E as pessoas gostam? “Quem frequenta o Volta conta que estar aqui e comer nossos pratos traz à tona a sensação de aconchego”.

Dá para entender. Aconchego que a pesquisadora Débora, do início deste texto, sente quando come o feijão de coco, receita da avó Silvina, ou que Lili experimenta quando percebe o aroma do bolo de Natal, registrado pela caligrafia delicada de dona Martha, ou que eu ainda provo todas as vezes que me delicio com uma fatia do bolo de creme de leite feito pelas mãos da minha mãe, Ligia. Sentimentos e memórias guardadas não apenas em folhas de papel, mas também dentro da gente.

Ana Holanda é editora da revista vida simples e adora dividir receitas com as amigas e cozinhar com a filha Clara.

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