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Presta atenção…
Photo by Markus Spiske on Unsplash
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Silêncio. Melhor, apenas os sons do mundo. Sons de freio, alarmes e buzinas nervosas, árvores chiando ao vento, tilintar das correntes das persianas no meio das sirenes. Não sei se são bombeiros, policiais ou ambulâncias. Recostada na porta da entrada, limite geográfico atual, vejo tudo muito claro, apesar das luzes apagadas e de toda essa confusão que está acontecendo.

Na penumbra iluminada é possível perceber a luz tocando os detalhes, os quadros refletem a poeira de uma vida imóvel. “Eu preciso limpar essa casa”. Escorrego as costas devagar até me ‘sentar no chão, enjoada de todos os tipos de assento da casa, fico reparando novos ângulos, tentando ver novidade na pasmaceira alucinante do isolamento. Consigo perceber meu par de chinelos escondidos debaixo do sofá… “então é aí que vocês estão”, penso isso como se me surpreendesse com algo que sempre acontece, mas gostando do pique-esconde inanimado das coisas.

Tudo está desarrumado e fora do lugar, dentro e por aí.  Almofadas emaranhadas disputam lugar num sofá enorme, os fones de ouvido repousam enroladinhos em cima de um porta-copo à espera da próxima reunião no Zoom. Ao meu lado, uma sapateira cheia de duplas empoeiradas e com cheiro de saudade da rua. O caos toma conta de mim e da cena. Todo silêncio se transforma em uma lista de afazeres, que talvez ­­eu não cumprisse porque fora novamente atropelada pela prioridade da vez; ou mesmo porque fui absorta por pensamentos mórbidos de que um mundo em ruínas não precisa de limpeza, muito menos de objetos decorativos.

Resisto ao breu, digo em voz alta que vai passar e me permito sonhar. O copo largado na mesa me lembra que tenho que beber água. Sempre! E junto, a pílula sagrada que agora me acompanha nessa solidão. Já até me acostumei, acho que nem faz mais efeito… pelo menos ajuda a dormir e a não mergulhar na profundeza da mente delirante. Os jornais enlouqueceram e sou eu que tenho que manter a sanidade? Logo eu que perdi os vizinhos de porta, vários amigos de trabalho e não tenho ninguém com quem contar em casa. Nem pra brigar!

Me dou um desconto, na oscilação da respiração e do pulso, levanto. E todo o caos se reintegra à ordem. Música! O que tem segurado a minha onda…a arte, a leitura, a escrita, a poesia da tragédia. Tantas lives de gente que eu sempre quis assistir e nunca pude, pdfs gratuitos de livros e tempo. Ah, o tempo em casa não pode ser de todo ruim, as gavetas arrumadas agradecem. As paredes manchadas de tinta nem tanto, mas a gastronomia caseira, essa sim, deu um salto carpado e já me considero uma chefe.

O que me salva, no fundo, é agradecer por ter mais um dia indecifrável. A dúvida da beleza ou da tristeza se revelam mais no final da tarde, quando já é possível vislumbrar um novo dia. Tudo na cena que vejo de pé, numa fração de segundo, um lampejo, passa a existir por uma razão e vou sentindo as coisas se tornando perfeitas pra mim, exatamente como elas são, entre a loucura da solitude e o prazer de habitar em mim, faço tempestade em festa, tambor nas batidas do coração e fortaleza nas paredes do apartamento.

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