Eu estava escolhendo tomates em um supermercado quando uma senhora tocou no meu ombro. Ela usava uma saia comprida pregueada de estampa floral delicada e uma blusa branca larga, que parecia um vestido cobrindo seu corpo franzino. “Me desculpe por te interromper. Estou vendendo o meu livro. É de poesias”, disse com uma voz terna, balançando os cabelos grisalhos e soltos. Ao me dirigir para a banca de batatas, pedi: “Fale mais do seu livro. É o primeiro ou já escreveu outros?” Foi a deixa para ela contar sua história. Frisou que havia sido uma ótima professora e, quando se aposentou, sentiu que não podia guardar para si tantos saberes. Daí a ideia de escrever o livro. Nenhuma das palavras que dizia era estratégia de vendedora. Ela estava mesmo convencida de que seus versos eram pérolas que não podiam ficar escondidas na concha da sua imaginação. Percebendo a minha pressa, a senhora colocou em minhas mãos um papel com seus contatos, para que eu encomendasse o livro depois. Isso aconteceu há alguns anos. Nunca encontrei aquele papel, mas a história que me contou é uma poesia que jamais vou esquecer.
Revisitar a vida com olhos de encanto, como ela, é algo que nem todos conseguem fazer. É difícil para alguns, achar que os passos que demos até aqui foram acertados. Dá a impressão de que eles nos levaram para qualquer lugar, menos para um que nos permitiria ter orgulho da nossa jornada. Quando essa sensação bate, parece que a trajetória de outras pessoas é bem mais empolgante, como quadros maravilhosos pintados em cores vivas. Perto deles, é fácil se sentir como uma tela pálida com um desenho sem graça.
Mas por que somos generosos com os outros e tão implacáveis conosco?
Bem, precisamos saber que a nossa história não começa com a gente, mas com a da nossa família. E lhe damos continuidade, a partir do que nos foi contado e do que vivemos desde então, dentro e fora do lar.
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Reescreva o que não foi bom
Essa mistura – formada pela nossa origem, memórias dos outros, dias bons e ruins, vitórias e quedas, rotina e novidades, sorrisos e lágrimas – serve de base para as escolhas que fazemos.
Podemos ver a vida que resulta delas como uma trama tecida com fios tão mal entrelaçados que dá vontade de jogar no lixo. Mas também podemos enxergar pontos diferentes, bonitos como são e cheios de possibilidades. Quando nos conhecemos bem, valorizamos a nossa caminhada, mesmo que ela tenha sido difícil. Sabemos de onde viemos, onde estamos e para onde queremos ir. E, quando olhamos para trás, temos a consciência de que fizemos o melhor, mesmo quando erramos. São os erros que fazem tanta gente rechaçar a própria história.
“Somos cobrados o tempo inteiro para não errar. Só que a vida não é perfeita. Nós aprendemos com as imperfeições. E essas imperfeições também nos dizem quem somos”, diz Marcelo dos Santos, professor de psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie de Campinas.
O passado não nos castiga apenas pelos erros, mas também pelo sofrimento que por vezes o acompanha, como uma nuvem escura sobre os momentos bons.
Edith Eva Eger encontrou um meio de desanuviar sua história triste. “O que aconteceu não pode ser esquecido, muito menos mudado. Porém, ao longo do tempo, aprendi que posso escolher como reagir ao passado. Posso me sentir triste ou esperançosa, posso ficar deprimida ou feliz. Sempre temos essa escolha, essa oportunidade de controle”, reflete a autora em seu livro de memórias A Bailarina de Auschwitz (Sextante).
Edith não tinha uma tarefa simples pela frente: precisava enfrentar as terríveis lembranças do Holocausto. “Nossas memórias da infância são muitas vezes fragmentos, momentos rápidos ou flashes, que juntos formam um álbum de recortes de nossa vida. Esses fragmentos são tudo o que nos resta para entender a história que passamos a contar para nós mesmos sobre quem somos.”
Foi juntando esses fragmentos, aceitando o que aconteceu e perdoando quem lhe fez tanto mal que Edith se viu livre da prisão do passado. Então pôde reescrever sua história, tornando-se psicóloga para tratar de pessoas que passaram por situações traumáticas como ela.
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Solte a dor
Fazer as pazes com o passado é se reconciliar consigo mesmo. É perder o medo de olhar para trás, parar de negar a própria história, de fugir dela ou de querer apagar algumas partes. “Quando a pessoa faz muitos recortes de si mesma, não só está se fragmentando, mas também não está sendo verdadeira em sua apresentação para o mundo. Algumas histórias são muito difíceis e, em função disso, a pessoa pode querer negá-la para o outro. Mas ela nunca vai poder escondê-la de si”, ressalta Marcelo.
Aceitar a história na íntegra pode ser um processo doído e cercado de solidão, como o que a lagarta passa antes de renascer borboleta.
“Depende da capacidade que a pessoa tem de se metamorfosear. Se for bem desenvolvida, pode levá-la a uma emancipação daquele sofrimento. Olhar para trás será uma má lembrança, mas não vai doer tanto”, salienta o psicólogo.
O que realmente importa
Há quase 30 anos, a historiadora Karen Worcman decidiu criar o Museu da Pessoa. Ela tinha feito um trabalho para o qual ouviu relatos de mais de cem imigrantes judeus que vieram para o Brasil fugidos do Holocausto. Sentiu que tinha em suas mãos um tesouro que precisava revelar ao mundo e decidiu fazer dele uma exposição em São Paulo. Montou nela uma cabine de captação de histórias, onde muita gente sentou e contou suas experiências de vida. Inspirada por elas, a historiadora teve a ideia de criar um museu virtual com histórias de pessoas comuns.
Desde então, mais de 20 mil histórias de vida e 60 mil imagens habitam o museu. Tem a do pescador baiano, do garimpeiro da Serra Pelada, da dona Mariquinha bonequeira do Vale do Jequitinhonha, do cantor Nando Reis ou do tenista Guga. São brasileiros de diferentes classes sociais, idades, gêneros, escolaridade e de todas as partes do país, que contam passagens de suas vidas. “Faz muito bem para a pessoa que conta porque é um momento em que ela reflete sobre tudo o que viveu. Ela cria uma narrativa da própria história de vida”, explica Rosana Miziara, historiadora e relações institucionais do Museu da Pessoa.
As histórias são relatadas diretamente no site ou colhidas em expedições que o museu faz Brasil afora. “A gente escuta muito: ‘Eu não pensei que tivesse feito tudo isso’. Ou: ‘Agora eu posso morrer. Deixei a minha história. Vocês gravaram tudo: minhas mãos, meus olhos e minha alma’”. Quando percebem a importância do legado que elas têm para deixar, ser comum ganha um novo significado. “Cada história de vida é única. Todo mundo tem a sua singularidade. Todos têm uma história interessante, bonita, triste, alegre para contar. Tem gente que acha a sua comum, mas outras pessoas veem beleza nela”, afirma Rosana.
Por isso, mesmo quando a caminhada não é exatamente como havíamos imaginado, é possível ver beleza no percurso.
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Lembrar é preciso
Todos nós temos condições de encontrar as partes perdidas da nossa linha do tempo. Podemos abrir as comportas da nossa memória e puxar as lembranças especiais. Um jeito de fazer isso é tirar da gaveta ou do armário os álbuns de fotografia e se demorar nos registros de família, nas brincadeiras de criança, na casa que moramos na infância, na escola, nas datas comemorativas, nas viagens e encontros com pessoas queridas.
“As fotografias deixam pistas, igual João e Maria, que deixavam o pãozinho no chão para voltar para casa. Essa nossa casa somos nós mesmos”, pontua a fotógrafa Carolina Pires. As pistas nos ajudam a redescobrir o que já tínhamos esquecido. Assim como as histórias, as fotografias não precisam ser perfeitas para serem especiais. Às vezes são aquelas às quais a gente não dá muita bola, envelhecidas pelo tempo, desfocadas ou que mostram uma bagunça ao fundo, que podem nos trazer respostas sobre o nosso passado.
“A fotografia conta histórias, relembra sentimentos, desembaça a memória. Ela faz com que a gente, além de não esquecer, descubra coisas que nem sabia”, analisa a fotógrafa. Esse reencontro com o que já passou pode ser o que falta para entendermos melhor as nossas relações e abraçarmos a vida com mais vontade.
“Por isso eu digo para as pessoas: não fujam da fotografia. Ela é um documento, um registro da nossa vida”, fala Carolina. Algo que não precisa ir parar nas nossas redes sociais, mas ser impresso para ficar na estante, num álbum ou na mesa de cabeceira. Para estar ali e provar o contrário quando os olhos da memória afirmarem que a nossa vida foi ruim ou passou em branco. Para nos vermos no espelho do passado, quando preciso.
O fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson dizia que as imagens deviam ser uma captura do momento decisivo. Ou seja, um instante mágico para fazer o clique, que não podia passar. Quando a gente olha para as coisas simples e os pequenos feitos, a nossa história deixa de parecer insignificante e se torna uma coleção de instantes mágicos.
Podemos decidir como vamos enxergar o passado e, assim, dar um novo brilho para a nossa história de vida.
SIBELE OLIVEIRA não despreza os desacertos que compõem a sua história. E sabe que eles são uma fonte inesgotável de autoconhecimento.
*Gostou desta reportagem? Ela foi originalmente publicada na edição 229 da revista impressa Vida Simples. Adquira a sua na loja ou assine e receba as próximas edições com textos tão especiais quanto esse.
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