Precisamos falar sobre positividade tóxica
Ao negarmos sentimentos que causam incômodos, como tristeza, raiva e inveja, desconectamos de nós mesmos e entramos no terreno perigoso da positividade tóxica.
- O que é a positividade tóxica?
- Ao que você atribui essa cobrança?
- É um fenômeno das redes sociais?
- Por que negamos os sentimentos negativos?
- Como abraçar o que sentimos sem culpa?
- Qual é a importância de aceitarmos as emoções negativas?
- Qual é a linha que separa a positividade da síndrome de Poliana?
- E como é a positividade saudável?
- Como se blindar da positividade tóxica?
Adriana Drulla: “Quando negamos sentimentos que causam incômodo — tristeza, raiva, inveja — desconectamos de nós mesmos e entramos no terreno perigoso da positividade tóxica”.
Quantas vezes, diante de uma situação difícil, você tentou ou foi aconselhado por um amigo a calar seus sentimentos, minimizá-los ou ver somente o seu lado bom? A prática dessa busca incansável por positividade pode ser prejudicial, afirma Adriana Drulla, mestre em psicologia positiva pela Universidade da Pensilvânia. Especialista em compaixão e autocompaixão e autora do podcast Crescer Humano, Adriana afirma que a ditadura da felicidade nega a natureza humana, que é composta por altos e baixos. “A pessoa passa a se culpar por não ser sempre otimista e estar sempre feliz, o que gera mais negatividade. Nosso corpo e nossa mente respondem pior ao estresse quando negamos o que estamos sentindo. É impossível estarmos bem quando estamos em guerra com nós mesmos”, diz.
Em uma sociedade que, muitas vezes, se baseia na aparência — ato propagado à exaustão nas redes sociais —, abrir espaço para a autocompaixão é o caminho possível para ter um encontro mais verdadeiro consigo mesmo e se livrar do peso de estar sempre bem. É preciso, pontua Adriana, agir conosco como faríamos com um amigo querido: acolhendo os seus sentimentos. E aceitar que não há vergonha em ter um dia ruim.
O que é a positividade tóxica?
É a crença que um estado feliz e otimista é desejável, possível e apropriado em todas as situações. Ela resulta na negação, minimização e invalidação da experiência emocional humana autêntica, deslegitimando a existência de certas emoções e sentimentos, que fazem parte da nossa experiência genuína.
Ao que você atribui essa cobrança?
Na minha opinião, a positividade tóxica é um subproduto da nossa cultura que sobrevaloriza o individualismo, a competição e o destaque. Atribuímos o sucesso ao esforço individual de cada um, e achamos que podemos ter tudo o que quisermos se acreditarmos e nos esforçarmos. De certa forma, essa lógica sustenta a economia de mercado porque nos motiva a trabalhar duro para realizar nossos sonhos de consumo. Por outro lado, a sobrevalorização da responsabilidade individual é uma ilusão, já que tanto o fracasso quanto o sucesso são multideterminados. Essa insistência no exagero da responsabilidade individual é muito dura, e faz com que nos consideremos responsáveis por coisas que na verdade não escolhemos. É comum atribuirmos nossas falhas unicamente às nossas escolhas, crenças e falta de esforço pessoal, por exemplo. Mas ao mesmo tempo, esta é uma crença sedutora porque quando nos consideramos os únicos responsáveis, temos uma ilusão de poder e controle. Mais do que isso, as pessoas passam a comparar o quanto são felizes. Como se a felicidade fosse um prêmio por competência, e a ausência dela, a punição pelo fracasso.
É um fenômeno das redes sociais?
Já existia antes das redes sociais. O pensamento positivo é um bem de consumo que alimenta um mercado multimilionário de filmes, livros, treinamentos e palestras há muitas décadas. Mas, certamente, a positividade tóxica encontrou um aliado nas redes sociais. Porque quando o ser humano se expõe socialmente, é natural que exista um esforço para que o outro o veja com bons olhos. Fica mais claro se lembrarmos que, em termos evolutivos, a sobrevivência do indivíduo humano depende do suporte do seu grupo. Por isso, nosso cérebro desenvolveu um mecanismo, conhecido pelos pesquisadores como sociômetro, cuja função é julgar ou imaginar qual será a percepção dos outros ao nosso respeito. As pesquisas mostram que fazemos isso o tempo todo, inclusive sem termos consciência. Quando percebemos que somos admirados, a nossa autoestima aumenta, reforçando a atitude que gerou admiração. Quando percebemos que somos ou podemos ser mal vistos, nossa autoestima diminui.
“A felicidade é reconhecida na nossa sociedade como um troféu”
Nós desejamos status, reconhecimento e aprovação social. As pessoas passam horas trabalhando em seus perfis sociais, construindo uma imagem que não condiz com quem realmente são. Já que a felicidade é reconhecida na nossa sociedade como um troféu, elas passam a divulgar apenas os momentos felizes. As redes sociais popularizam a ideia de que é possível ter uma vida livre de sofrimento. Raramente as pessoas publicam suas falhas ou destacam seus erros. Seguimos vidas artificialmente fabricadas e, como resultado, ficamos com a impressão de que todos estão lidando com tempos difíceis ‘melhor do que nós’, e isso promove uma sensação de solidão, vergonha e constrangimento. Quando o perfeito se torna normal, o bom se torna descartável.
Por que negamos os sentimentos negativos?
Todos sentimos dor, tristeza, raiva, inveja, ciúme. Essas são emoções transitórias que fazem parte da natureza humana. Mas a pressão para estar sempre bem, invalida a grande gama de emoções que experimentamos. Logo, quando sentimos qualquer tipo de desconforto emocional — como a raiva e a tristeza — está subentendido que fracassamos e que somos inadequados ou fracos. Por isso, uma das razões porque mascaramos o desconforto emocional é a vergonha. O sentimento de vergonha é causado por esta sensação de inferioridade, como se possuíssemos uma característica tão indesejável que fosse necessário escondê-la para preservarmos nosso valor social. Na vergonha, não queremos admitir para o outro — ou para nós mesmos — que falhamos em ter uma vida perfeita. O que alimenta a vergonha é o julgamento, o silêncio, o segredo e a negação.
Uma segunda razão é porque, como o nome sugere, emoções desconfortáveis são difíceis de sentir. Elas podem inclusive estar associadas a eventos ou preocupações que gostaríamos de esquecer. De fato, a evitação emocional produz um alívio temporário para as emoções difíceis. Por isso, é um recurso muito sedutor. Porém, a longo prazo, a evitação piora o desconforto e os nosssos problemas.
“As redes sociais popularizam a ideia de que é possível ter uma vida livre de sofrimento”.
E por quê?
Não resolvemos o nosso problema e, por isso, eles costumam piorar. Se precisamos chegar em um compromisso e nos deparamos com o trânsito, negar o engarrafamento não o fará desaparecer. Na verdade, quanto mais você conhecer o engarrafamento, melhor conseguirá lidar com ele. A mesma lógica funciona para o desconforto emocional. Nossas emoções são informações de que algo precisa da nossa atenção. Se, em vez disso, usarmos a nossa energia para nos distrair, claro que não resolveremos o problema. Na verdade, a evitação se torna uma prisão porque diminui as nossas habilidades de enfrentamento. É muito comum criarmos até um segundo problema: o vício. Consumimos repetidamente o mesmo recurso — bebida ou álcool, por exemplo — na tentativa de esquecer o desconforto a cada vez que ele surge.
Além disso, as tentativas de evitar emoções negativas geralmente são inúteis. Daniel Wegner, um pesquisador da Universidade de Harvard, fez estudos interessantes sobre esse tema. Funciona assim: quando você tenta controlar um pensamento ou emoção, uma parte automática e inconsciente do seu cérebro passa a monitorar o seu progresso e as suas falhas. Sua mente se pergunta, de forma automática e constante: “será que eu estou conseguindo não pensar ou não sentir determinada coisa?” Ou seja, ao se certificar da ausência da emoção ou pensamento negativo, você os introduz na sua consciência. Ou seja, o medo da experiência negativa torna-se a própria experiência negativa. E, a partir daí, você precisa se esforçar ainda mais para reprimir o que sente. Esse ciclo se repete inúmeras vezes até que você se cansa, e sua mente é inundada por aquilo que desejava evitar. Nosso corpo e nossa mente respondem pior ao estresse quando negamos o que estamos sentindo. É impossível estarmos bem quando estamos em guerra com nós mesmos.
Como abraçar o que sentimos sem culpa?
Através da autocompaixão, a nossa capacidade de fornecer suporte emocional a nós mesmos. Quando acolhemos o que sentimos com compaixão, estimulamos o nosso sistema nervoso parassimpático equilibrando as reações de estresse, e desligando o nosso sistema de alarme. Isso nos deixa menos reativos e nos ajuda a ter uma perspectiva mais ampla sobre o que nos incomoda. Então, para abraçar o que sentimos sem culpa, eu aconselho seguir os três passos da autocompaixão. Isso auxiliará a dar então o quarto passo, que é escolher a melhor forma de agir:
1) Mindfulness: Nomeie a emoção ou pensamento investigando como as emoções agem no seu corpo.
Por exemplo, “eu estou pensando que essa pessoa não se importa comigo”, ou “eu me sinto rejeitado”. Nomear abre um espaço entre você e suas emoções, permitindo que você veja seus pensamentos e sentimentos pelo que eles são: fontes de dados que comunicam uma perspectiva e não a verdade absoluta. Em seguida, faça algumas respirações profundas, observe o que está acontecendo com o seu corpo. Aceite o que você sente com curiosidade e atenção, tentando não aumentar nem diminuir. Isso não necessariamente fará você se sentir bem. Na verdade, você pode perceber o quanto está chateado. O importante é perceber a qualidade energética das suas emoções.
2) Humanidade comum: Lembre-se que não há nada de errado com você.
De acordo com Paul Ekman, um dos principais pesquisadores que estuda emoções, o nosso mundo emocional é composto por cinco emoções básicas. Destas cinco emoções, quatro são desconfortáveis (medo, nojo, raiva, tristeza) e apenas uma é positiva (alegria). Por que desenvolveríamos tantas emoções desconfortáveis se o desconforto fosse prejudicial? Pelo contrário, cada emoção tem uma função evolutiva diferente e todas elas são necessárias. Quando aceitamos nossas imperfeições e sofrimento como normais, conseguimos vê-las como parte do nosso aprendizado e não como provas da nossa incompetência. Quer dizer, nossas imperfeições fazem parte de quem somos, mas elas não nos definem. Se todos sofremos, não faz sentido nos sentirmos inferiores por sofrer.
3) Autogentileza: Acolha o seu desconforto.
Procure ter um diálogo interno gentil e solidário. Pense como você falaria para acolher um amigo que estivesse passando pela mesma situação, e ofereça a si mesmo essas palavras. Quando acolhemos nosso desconforto, nosso corpo e nossa mente entendem que temos apoio e que estamos seguros. Se nos sentimos seguros, não precisamos nos defender e como consequência ficamos menos reativos e mais capazes de ver a situação por uma perspectiva mais ampla.
4) Ação baseada em valores: Nossas emoções são sinais importantes.
Porém, elas não são a única fonte de informação que temos disponível. Além das emoções, temos os nossos valores, objetivos pessoais, pensamentos racionais e experiências adquiridas ao longo da vida. Logo, precisamos colocar as informações que as emoções trazem destas outras fontes de informação, para então decidirmos como vamos agir em determinada situação. Podemos nos perguntar “o que esta emoção me ensina sobre aquilo que importa para mim?” e procurar agir de acordo com essa resposta. Por exemplo, se você está triste porque brigou com alguém, a pista pode ser que a conexão com essa pessoa é importante para você. O valor em jogo é o amor que você sente. Logo, uma resposta coerente com esse valor seria cuidar dessa relação em vez de se vingar ou prolongar a briga.
Qual é a importância de aceitarmos as emoções negativas?
Primeiro, quando aceitamos as emoções estamos lidando com a realidade em vez de gastarmos energia fugindo ou afastando a emoção. Quando conseguimos lidar com a realidade com autocompaixão, fica mais fácil lidar com aquilo que incomoda, ou resolver o problema da melhor forma. Em segundo lugar, quando aceitamos as nossas emoções, nos abrimos para entendê-las melhor. Aprendemos sobre o que dizem e como podemos manejá-las e integrá-las em nossas vidas.
Terceiro, a aceitação nos ensina na prática que algumas emoções podem sim ser desconfortáveis, porém, isso não significa que sejam nocivas. Por último, quando aceitamos as emoções desconfortáveis como a raiva e a ansiedade, por exemplo, elas tendem a perder o seu poder destrutivo. Isso acontece porque essas emoções ligam o nosso sistema de alarme, queremos lutar ou fugir daquilo que nos incomoda. Se temos medo das nossas emoções, estimulamos ainda mais este sistema de alarme e nos tornamos mais reativos, amplificando aquilo que queremos afastar. Porém, quando conseguimos estar com o desconforto, nos dando apoio até que ele passe, estimulamos um outro sistema neurofisiológico — da conexão e da calma — que neutraliza o sistema de alarme e nos ajuda a observar o que estamos sentindo sem reagir impulsivamente.
Qual é a linha que separa a positividade da síndrome de Poliana?
Poliana, a personagem órfã do livro que inspirou esta expressão, aprendeu com o pai a procurar sempre o lado positivo das coisas. O problema é que Poliana via apenas o lado positivo e nada mais. O otimismo excessivo é um erro cognitivo. Ele faz com que as pessoas não consigam ter uma visão realista das situações, sobrevalorizando o que é bom e deixando de levar em conta os riscos e custos de suas ações. Desta forma, pessoas que tem uma visão excessivamente positiva, tendem a se envolver em situações mais arriscadas e se precaver menos.
E como é a positividade saudável?
Não tem nada de errado em vermos o lado positivo. Pelo contrário, é saudável entendermos a natureza multifacetada dos eventos e das pessoas. A positividade saudável reconhece emoções autênticas e rejeita o entendimento de que uma situação é necessariamente só boa ou só ruim. Emoções opostas podem acontecer simultaneamente. Ou seja, você pode ficar triste por perder seu emprego e ter esperança de encontrar um novo emprego no futuro. Algumas décadas de pesquisa mostram que a capacidade de ressignificar eventos é um dos principais fatores que suportam a resiliência humana. Ou seja, quando construímos sentido a partir das adversidades, tirando lições proveitosas do que nos acontece, conseguimos crescer a partir dos nossos desafios em vez de ficarmos piores por causa deles.
Como se blindar da positividade tóxica?
Primeiro, é importante estarmos atentos às mensagens que invalidam nossos sentimentos, evitando levá-las a sério ou reproduzi-las. Mensagens vazias que sobrevalorizam a positividade, como “escolha ser feliz”, invalidam outras emoções genuínas. Segundo, podemos evitar discutir nossos sentimentos com pessoas que nos pressionam para sermos otimistas sempre. Ou que invalidam nossos sentimentos desconfortáveis. Terceiro, fique atento à mídia social. Muitas pessoas promovem a positividade tóxica publicando o que parece ser uma vida perfeita. Escolha seguir pessoas autênticas ou, então, engaje-se menos com as redes. Quarto, dedique-se ao desenvolvimento da autocompaixão. Quando entendemos o que precisamos para nos sentir apoiados durante o sofrimento, fica mais fácil reconhecer quando as pessoas fazem o contrário. E lembre-se de reconhecer, normalizar e acolher as emoções das outras pessoas, mesmo que elas não façam sentido para você. Quando censuramos as emoções das outras pessoas incentivamos a falsidade e as amizades superficiais.
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