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A comunhão com as coisas
Montagem Shutterstock e iStock
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A gentileza nos ensina a limpar os olhos e a recuperar o encantamento de criança pela vida, deixando para trás angústias e comparações

“Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação”, disse o poeta Manoel de Barros sobre sua infância – e sobre a vida. Mesmo não tendo vivido a meninice em um cenário particularmente poético, com pedras que falam e rios que circulam casas no pantanal, não é incomum considerarmos nossa infância esse lugar no qual nós fomos nós mesmos, naturais, livres, em comunhão com as coisas, como fala o poeta.

Crescer – esse evento fatídico – seria, ao contrário, descomungar, e passar a comparar. Adentrar, quase sem volta, o mundo dual. Comparar o que eu quero com o que eu não quero. Comparar a minha vida com a do outro, e, de tanto comparar, passar a querer mais ou não querer nunca mais. Dizendo sim e não para as coisas, deixamos de comungar delas, e tristemente crescemos.

Me desmancho com Manoel de Barros, mas desconfio dessas visões de um paraíso inalcançável, sejam elas as dos poetas ou as dos padres. E me pergunto: afinal, parar de comparar não é possível? Não é possível viver não mais uma infância, mas uma vida de comunhão, uma vida plena, significativa – mesmo depois de tanto tempo com a mente metida em “comparações”?

Há muitas versões para uma história. E, em uma das versões mais verdadeiras, eu me meti no budismo e fui para a Índia apenas guiada por perguntas assim: bobas. E difíceis. Fui para lá para ver se comungar era possível outra vez.

O comungar não religioso

O budismo tem mais de 2600 anos e é indiano de nascença. Mas hoje não é mais em páli, sânscrito ou híndi que ressoam os ensinamentos do Buda na Índia. O budismo que vive, levanta as paredes dos templos e conduz a vida das pessoas no subcontinente é falado, majoritariamente, em tibetano. Com a invasão do Tibete pela China em 1959, os ensinamentos budistas, transplantados no século 8 da Índia para o Tibete, puderam retornar ao seu local de origem em um novo idioma, mas com o mesmo frescor e autenticidade que só uma tradição baseada na experiência pode garantir.

Vivi por nove meses em Mcleodganj, uma das muitas vilas de refugiados tibetanos na Índia. Acordava ao som das cornetas dos mosteiros tibetanos que existiam ao redor da minha casa e assistia a aulas de lógica e filosofia budista tibetana. As aulas eram lecionadas da maneira tradicional como se tem feito nos mosteiros do Tibete há várias gerações. O perfume da tradição que tanto fascina os ocidentais estava ali, intenso e penetrante. Os muitos monges pelas ruas, as cornetas, os rituais diários nos templos, as cavernas com iogues em meditação ao redor da cidade e todas as histórias de milagres eram parte desse cenário que fazia brilhar os olhos dos estrangeiros.

No entanto, não era exatamente isso que me interessava, ou que respondia as minhas perguntas – bobas e difíceis. O que sempre me atraiu no budismo foi a capacidade extraordinária que os grandes mestres têm em apresentar os ensinamentos e explicar a realidade de forma não dogmática. Inclusive não religiosa. Mesmo falando dentro de templos e cobertos com vestes tradicionais, muitas vezes, aquilo que comunicam é simplesmente lógico e natural. Completamente sem adorno, sem nenhum resquício de religião, mas ainda assim revolucionário – pelo menos para mim. De repente vi, ainda que imersa em um ambiente que continha toda a ritualística possível do budismo tibetano, reacender meu fogo para os ensinamentos mais simples, diretos, sem roupagem religiosa.

Gentileza como comunhão

Naqueles meses em Mcleod, observava como louca os gestos das pessoas do lugar, a forma como se relacionavam com as crianças, com os mais velhos, com os bichos – gatos, cachorros, macacos, vacas. Havia vacas em cada canto daquele país e, ali, aos pés dos Himalaias, não era diferente. Muitos moradores da vila saíam de casa todos os dias de manhã com seus baldezinhos cheios de casca de frutas e legumes para alimentar as vacas que sempre estavam, com os olhos melancólicos, esperando no mesmo lugar.

E um dia presenciei o seguinte: um senhor tibetano alimentando uma vaca quase como se fosse uma criança, colocando pacientemente vagem por vagem na boca dela. Não sei o que se passava na cabeça daquele homem, mas seus gestos só revelavam uma coisa: bondade. Imensa bondade e gentileza.

Aquela cena podia resumir um dos ensinamentos mais básicos (não por isso menos profundo) do budismo tibetano – exatamente aquilo que estava reacendendo em mim. Ensinamentos baseados na lógica e no bom senso e que tem a ver com gerar a convicção de que todos os seres aspiram a felicidade. Bem como, evitam o sofrimento e agem de forma positiva – bondosa, gentil – uns com os outros. Desse modo encontramos o caminho para uma existência mais feliz. Um caminho onde a comunhão com as coisas é possível outra vez.

Gentileza e o caminho da liberdade

Nas palavras de S.S. o dalai-lama, temos uma tendência natural à bondade e à gentileza, e é isso que define a nossa natureza humana comum, o que nos une a todos os 7 bilhões de habitantes deste planeta. Por mais que estejamos envolvidos em ambientes internos aflitivos, violentos ou cheios de ódio, indiscutivelmente apreciamos a bondade e a gentileza de outros em relação a nós. E, do mesmo modo, ainda que muitos de nós dificilmente pratiquemos isso, nos sentimos bem quando agimos com bondade e gentileza.

Usando outras palavras para oferecer o mesmo ensinamento, Chogyam Trungpa Rinpoche, outro grande mestre, apresenta a prática de gentileza como o começo de um caminho de liberdade. Para ele, grande parte do caos que há no mundo se produz porque as pessoas não apreciam a si próprias. “Como nunca chegaram a demonstrar amizade e ternura a si mesmas, não podem experimentar dentro de si nem paz nem harmonia e, por isso, o que projetam em direção aos outros é também confuso e inarmônico.” Da forma como ele apresenta, para ser capaz de expressar gentileza, é preciso que você gere primeiro gentileza, apreço, ternura, amizade por uma única pessoa: você mesmo.

Podemos vivenciá-la

Essa prática de gentileza é para mim – a parte de todo o meu padrão psicológico de paraibana braba – das práticas mais difíceis. Porque gentileza, ao contrário do que a palavra denota, não é algo externo, algo como uma etiqueta. À luz dos ensinamentos desses mestres, gentileza é o aflorar de uma mente pacífica onde há espaço para o outro. E oferecer isso é o começo da expressão de bondade no mundo, a prova de que somos todos capazes de vivenciá-la.

Voltando para Manoel de Barros. A gentileza talvez seja a nossa liberação do mundo da comparação, um alívio nesta busca incessante por um paraíso. Isso, seja o universo mágico da infância, seja o paraíso que nos espera em algum lugar depois da morte. Vivenciá-la talvez nos ajude a deixar cair nossas ilusões e permita que nos relacionemos com o mundo honesta e diretamente. Além disso, com apreço profundo por nós mesmos, pelas coisas, pelos bichos, pelas pessoas. A gentileza – seja a dos mestres ao nos ensinar sem dogmas, a nossa ao nos avaliarmos com ternura, a de um homem ao alimentar como um bebê uma vaca – é a própria comunhão com as coisas.

Lia Beltrão tem se dedicado a encontrar respostas para uma porção de perguntas bobas. Ela cozinha muito bem.

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