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“Engole o choro”: o impacto dos atos punitivos nos traumas de infância
Unsplash | Keren Fedida
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“Criança não tem que querer”, “Xiu! Engole esse choro!”, “Obedeça-me, que sou sua mãe/seu pai!”. É possível que você tenha crescido ouvindo essas frases. Apesar de comuns e presentes em muitos ambientes familiares, elas estão atreladas a um tipo de criação punitiva que inclui abusos verbais e, em muitos casos, violência física. Historicamente, esse modelo de educação para crianças tem sido aplicado de geração em geração. Hoje, sabe-se que muitos adultos carregam marcas profundas dessa época que se traduzem em traumas de infância.

Afinal, é possível quebrar esse ciclo? E como lidar com o impacto desses atos? Para entender o assunto, Vida Simples conversou com especialistas e, a seguir, conta histórias de pessoas que estão tentando vencer as barreiras levantadas pela violência.

“Desenvolvi uma relação muito conturbada com meus pais”

Juliana (nome fictício) tinha 15 anos quando seus pais se separaram. Foram anos de um relacionamento marcado por diversos atritos que se expandiam do casal para as filhas. “A gente fala, na família, que eles nunca deviam ter se casado”, relata. Aos 37 anos, a jornalista de Curitiba é casada e não mora mais com os pais. Com sua própria família, continua curando feridas e traumas que vieram de sua infância complicada.

Fui uma criança que apanhou muito, no estilo correção. Tanto meu pai, quanto minha mãe, tinham essa visão de que a criança precisa apanhar para aprender”, lembra. A situação seguiu até ela ter idade o suficiente para conseguir tentar impedir as agressões. “Aos 14 anos, após uma discussão muito grande com a minha mãe, ela ia me dar um tapa na cara e eu não deixei. Consegui conter, então rolou uma explosão dela, porque eu a enfrentei”, revela.

Além de bater, era comum que seus pais usassem métodos de castigo para disciplinar as duas filhas. Ela e sua irmã não podiam sair se não terminassem as tarefas domésticas. Juliana acredita que o castigo, muitas vezes, pode ser pior do que a violência física, porque o castigo retira a liberdade da pessoa. “E aí, o que aconteceu? Cresci e desenvolvi uma relação muito conturbada com meus pais. Nós não temos uma relação próxima, não temos amizade”, conta.

Adulta, Juliana relata que segue tendo dificuldades de se entender completamente, pois sofreu muito psicologicamente em um momento crucial de construção da sua personalidade. “Não sei quem eu sou. Hoje tenho dificuldade de dizer ‘essa é a Juliana'”, diz.

Uma história que se repete em muitos lares

O caso de Juliana não é incomum. Violências domésticas contra crianças são normalizadas, revestidas culturalmente como tentativa de educação e disciplina. Quase metade das crianças do mundo sofre algum tipo de violência regularmente, podendo ser física, sexual ou psicológica. A informação é de 2020, do Relatório do Status Global sobre Prevenção da Violência contra Crianças, pela OMS, UNICEF e UNESCO.

No Brasil, mais de 80% dos casos de violência contra crianças e adolescentes ocorrem dentro de casa, segundo dados de 2021 do Disque 100, portal de denúncias do governo de casos de violação de direitos humanos. Os principais denunciados pela violência são exatamente as pessoas que mais deveriam proteger e cuidar das crianças: a mãe (15.285 denúncias), o pai (5.861) e o padrasto ou a madrasta (2.664).

As situações de abuso podem chegar a níveis extremos. Em dezembro de 2023, um caso de violência infantil chocou os brasileiros pelo desfecho que a agressão tomou. No Rio de Janeiro, um pai foi preso como suspeito de ter assassinado sua filha de 8 anos. A agressão teria sido feita com um cinto, segundo informações da Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo.

Traumas de infância: consequências para as crianças e para os futuros adultos

Abusos e agressões em qualquer fase da vida são problemáticos. Quando ocorrem na infância, eles possuem o agravante de interferir no desenvolvimento das crianças. Durante essa fase, o cérebro está em um processo intenso de crescimento, o que torna esse período especialmente vulnerável.

A falta de suporte, conexão e segurança, comum em lares ameaçadores, compromete o desenvolvimento cognitivo e biopsicossocial das crianças. Márcia Inês Coelho, terapeuta especialista em traumas e inteligência emocional, explica que “experiências adversas podem resultar numa redução efetiva do volume cerebral da criança, afetando o sistema imunológico e o sistema endócrino”.

Ela aponta também outros sintomas, mais difíceis de mensurar clinicamente, mas que estão presentes no cotidiano da criança e do futuro adulto.

Ansiedade crônica, fadiga constante, procrastinação severa, baixa autoestima e compulsão por agradar são os principais exemplos.

Além disso, é no ambiente familiar que as pessoas têm suas primeiras impressões a respeito do mundo e de si mesmas. “Se nos sentirmos amados, respeitados e apoiados em casa, é muito provável que sejamos capazes de confiar em quem somos e na nossa capacidade de resolver problemas ou superar emoções intensas e desagradáveis”, afirma a terapeuta. “Se, ao contrário, vivemos em contextos de maior abuso ou imprevisibilidade afetiva, podemos tornar-nos mais inseguros e desconfiados em relação ao mundo à nossa volta”, completa.

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O impacto dos traumas de infância nos relacionamentos amorosos

Uma criança pode internalizar o que aprendeu em casa e projetar isso no seu relacionamento com o mundo, com os outros e consigo mesmo, se estendendo até sua vida adulta. Coelho, que também é colunista na Vida Simples, exemplifica como essas relações podem ficar distorcidas.

“Se um pai diz a um filho ou filha que lhe bate porque se preocupa, este pode chegar à vida adulta com uma associação implícita entre agressão e afeto“. Ou seja, quando receber agressões em relacionamentos amorosos, também pode achar normal que isso aconteça.

Sob o mesmo ponto de vista, o abuso indireto também pode ser interiorizado. “Se no relacionamento dos seus progenitores existia uma constante manipulação e disputa de poder, a pessoa pode internalizar que um relacionamento amoroso funciona com base nessa dinâmica”, destaca.

Abuso verbal também é violência

É importante destacar que violência é violência, seja ela da natureza que for. Isso significa que não se pode relativizar ou diminuir certos abusos por serem “apenas” feitos de forma verbal. O livro Apanhei e não morri: Frases da Infância que ainda ecoam na vida adulta* conta histórias de pessoas que sofreram violência verbal e como isso repercutiu em suas vidas adultas.

A obra foi coordenada pelas psicólogas Cristiane Rayes e Rejane Villas Boas Tavares Corrêa. De acordo com elas, um dos principais impactos das violências verbais na vida das crianças e é que elas se tornam crenças, encaradas como uma verdade. Isso pode gerar comportamentos e atitudes danosos no decorrer da vida, porém naturalizados pela interiorização desses abusos.

Vistas fora do contexto, elas não parecem tão graves. No entanto, se tornam problemáticas pelo significado compreendido e internalizado pelas crianças. É ele que fere e causa os traumas. “Na educação de filhos, não é sobre a minha intenção somente. A intenção tem a ver comigo, a atenção é quando olho para o outro e observo a necessidade dele”, explica Rejane Villas Boas. “É muito mais sobre o que o outro dá de significado do que sobre aquilo que faço”, finaliza.

Frases aparentemente inocentes guardam, simbolicamente, significados violentos. “Obedeça-me porque sou sua mãe/ seu pai”, “engole o choro”, “criança não tem querer” e “fiz isso pelo seu bem” podem ser interpretadas como formas de silenciamento, coação e chantagem emocional. No caso do “engole esse choro” ou “homem não chora”, segundo Cristiane Rayes, o que fica é o sentimento de invalidação de sentimentos e emoções que são naturais, como a frustração e o medo.

Para criar filhos de forma diferente, é preciso reeducar as emoções

Se adequar ao que foi ouvido ou presenciado na infância é um mecanismo natural das pessoas. “O sistema nervoso de alguém que viveu um grande trauma, permanece preso em respostas de sobrevivência”, conta a terapeuta Márcia Inês Coelho. “Uma pessoa que passou por experiências adversas de infância não faz mais, melhor ou diferente, porque não quer. É porque o seu sistema nervoso não sente segurança para abandonar esse mecanismo de defesa”, completa.

Mesmo sabendo os danos que a violência causa, ela ainda se perpetua nos ambientes domésticos. E por que esse ciclo se repete, de geração em geração? Algumas justificativas são a falta de repertório e de ferramentas de inteligência emocional dos cuidadores na criação de filhos.

O autoconhecimento, portanto, é fundamental para compreender os comportamentos que são prejudiciais. Sendo assim, Cristiane Rayes aponta a importância de olhar para si no processo de parentalidade e como a criação de cada um pode interferir na relação com os filhos. “A gente tem que entender o nosso jeito, o da nossa criança, e entender que talvez nós não tivermos emoções validadas”, diz. E igualmente destaca: “nós não aprendemos, nós não viemos de uma geração que falava muito de emoções. A gente não tem um vocabulário emocional”.

Se para ensinar é preciso saber, a criação de filhos vai passar pelo processo de educação das emoções dos pais.

“Como vamos ensinar algo para os nossos filhos se não sabemos?”, questiona Rejane Villas. “Costumo dizer que vamos entrar para a história. A gente é a primeira geração que está aprendendo, se educando e também educando os nossos filhos de uma forma diferente. Isso é maravilhoso”, comemora.

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A parentalidade, em geral, é repleta de desafios, mas também de muito julgamento. De fato, sair de um padrão perpetuado por gerações pode parecer desafiador. Para quem tenta fazer diferente, são muitos os olhares e comentários de pessoas que não entendem ou concordam com uma forma de criação mais respeitosa com a criança. Apesar disso, corajosamente, alguns pais estão dispostos a quebrar os ciclos geracionais de violência.

“Essa perspectiva tem sido diferente em algumas famílias”, argumenta a professora Antônia Burke, formada em Psicanálise (EBEP) e em Mediação de Conflitos pela UERJ. “Acredito que a internet trouxe esse aspecto positivo: a informação acessível, o debate e muita gente boa produzindo conteúdo sobre o assunto”, afirma.

Uma abordagem que tem se popularizado cada vez mais é a da disciplina positiva, baseada na ideia de ser gentil, mas com firmeza, segundo a especialista e colunista da Vida Simples. Assim, Antônia reitera que apesar de muitos acreditarem que essa educação respeitosa é o mesmo que deixar a criança fazer o que bem entender é, na verdade, o oposto disso. “As crianças desejam o limite e o porto seguro da autoridade de um adulto”, explica.

Para Burke, é possível ter acordos e diálogos com as crianças, estabelecendo limites, sem precisar apelar para a violência. Como resultado, uma educação baseada no respeito gerará frutos em seu futuro.

“Se entendemos, acolhemos e fazemos uma boa escuta sobre as questões dos nossos filhos, eles vão crescer sabendo se expressar, questionando o que está errado e também respeitando outras pessoas”, diz.

Por fim, a profissional ainda ressalta a importância da observação e de usar a própria intuição durante todo o processo. “Você é a melhor pessoa para saber o que seu filho precisa. Mas, para isso, precisa conhecê-lo de verdade. E a gente só conhece alguém quando observa e dialoga”.

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A jornada de uma filha com traumas que se torna mãe

Juliana, que teve sua história como filha contada nos primeiros parágrafos da reportagem, é mãe de dois meninos. Por isso, quando a maternidade chegou, refletiu sobre sua criação e foi buscar novas formas de cuidar das suas crianças: “As pessoas falam assim, ‘você vai ser mãe, você vai entender os seus pais’, e comigo foi o completo oposto. Quando me tornei mãe, enxerguei nitidamente todas as falhas que aconteceram na minha criação”.

No entanto, enfatiza que não culpa seus pais, pois entende que cada um trabalha com o que tem acesso em sua época. Atualmente, Juliana possui muito mais recursos para uma educação saudável do que seus pais tiveram durante sua criação: “[Na época] quem não seguisse esse padrão era estranho. Uma criação com mais apego, com menos violência, era o estranho. Existia um papel completamente inverso”.

Aliás, ela não esconde como foi sua própria criação e tem uma comunicação aberta com suas crianças. “Falo para eles: ‘mamãe já apanhou, já ficou de castigo. Mas prefiro sentar aqui com vocês e falar o que vocês estão fazendo de errado'”, relata a mãe.

Juliana reconhece que é uma luta diária não repetir o padrão que lhe foi ensinado, mas que isso é benéfico tanto para os seus filhos, quanto para si mesma.

Percebeu nitidamente o resultado de seu esforço quando seu filho comentou que ela era “muito legal”. No momento em que questionou o porquê, a resposta a surpreendeu. Ele disse: “Converso muito com os meus amigos, sabe? Você não bate em mim, e eles sempre apanham dos pais. E você conversa tanto comigo”.

“Nesse momento, pensei: ‘estou no caminho certo’“, reconhece Juliana.

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