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Doces da terra
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Feitas, em geral, de frutas, essas delícias estão deixando de ser memória para ocupar novamente um espaço de destaque nas mesas do dia a dia e nas grandes festas

Adriana Lira nasceu e cresceu em Goiás, mas é filha de paraibana, como gosta de comentar. É publicitária de formação, mas se descobriu doceira há bem pouco tempo. Na verdade, os doces sempre estiveram presentes em sua trajetória, nas refeições, nas festas em família.

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Mas, um dia, ela teve vontade de compartilhar essa paixão com mais gente, e foi assim que surgiu o Dona Doceira, uma doçaria, que fica em São Paulo, no bairro do Itaim. Lugar escondido, nos fundos de uma vila de casas — coisa rara no bairro rodeado de lojas e prédios comerciais. Mas o local não é uma doçaria comum, é na verdade um espaço para provar. É que Adriana faz essas pequenas delícias açucaradas para festas, jantares e comemorações em geral. Só que no cardápio de opções não tem trufas ou os doces finos mais comumente encontrados nesses eventos. Adriana conseguiu algo lindo: ela transforma os doces tradicionais brasileiros em miniaturas preciosas, delicadas e saborosas.

Doce tem história

Em uma bandeja comprida ela traz flores feitas de fita de coco, brigadeiro de milho (assustadoramente bom), doces de abóbora, mamão, banana, figo, tudo moldado de um jeito que a guloseima fica parecendo uma pequena
preciosidade, um mimo, uma joia. No meio desses doces, que, para mim, provocam identificação rápida, tem também o limãozinho, uma compota feita a partir de um limão pequenino, muito comum em Goiás, que explode na boca e se une ao doce de leite (do recheio) artesanal. Essa pequena delícia, aliás, é conhecida em Goiás, mas a receita, conta Adriana, não foi fácil de encontrar. Ela descobriu por acaso, em um livro antigo de doces portugueses. É que nem todas as receitas se perpetuam com o tempo. Algumas se perdem. Em especial as do dia a dia, aquelas que marcam a nossa infância, que têm a ver com a nossa trajetória. Uma pena.

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Fico sabendo que aquele limão pequenino, que demanda tempo e paciência para ser preparado (há que se cortar do jeito certo e colocar a fruta de molho de uma maneira peculiar para que o amargor não contamine o doce), é o carro-chefe da doçaria junto com as flores feitas de fita de coco. É que os doces brasileiros produzidos por Adriana estão cada vez mais compondo a mesa dos casamentos de quem entende que essas sobremesas podem e devem estar presentes nas nossas festas e na nossa vida. Isso porque ajudam a contar a nossa história. Aliás, para todos que vão degustar seus mimos comestíveis, Adriana sempre deixa claro, no início da conversa: “Você só consegue entender o que é um doce depois que ouve a história”.

Nossa história

Adriana tem razão. Os doces sempre estiveram na nossa mesa com fartura. E nas nossas recordações, nas lindas e oponentes compoteiras de vidro que reinaram nas prateleiras da cozinha de muita gente: laranja, goiaba, mamão, figo ou abóbora. Ou nos doces cristalizados que podiam virar presente em caixas graciosamente decoradas. E isso começou lá atrás, no passado cheio de mistura de raças e origens. Um dos autores que mais escreveram sobre isso foi o pernambucano Gilberto Freyre. Há quem o considere, aliás, o sociólogo do doce. Segundo Freyre, a formação da nossa culinária e doçaria tem base nas tradições indígena, africana e portuguesa.

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“Obviamente outras influências aconteceram no período das navegações. Judeus e mouros, franceses, italianos contribuíram para as variações em nossas mesas”, explica Juliana Venturelli, pesquisadora que estuda os cadernos de receitas das cozinheiras tradicionais da Estrada Real de Minas. Há que se entender também que a origem dos doces por aqui tem a ver com o que tínhamos: o que a terra nos dava.

Sempre tivemos muitas árvores frutíferas — em número e em variedade —, por isso somos tão bons em fazer compotas de frutas. O formato compota também ajudava na temporalidade porque o açúcar conserva o doce por mais tempo — a geladeira foi inventada em 1913. Sem esquecer, claro, que o Brasil foi um grande produtor de cana e, assim, o açúcar era um artigo comum e de fácil acesso.

Tradição gastronômica

O uso dos ovos nas receitas veio da tradição portuguesa. Mas o que não faltava por aqui era um quintal grande para criar galinhas. A mandioca tem relação direta com os índios. A raiz, aliás, era a base para muitas misturas, já que, nos tempos mais antigos, a farinha de trigo não era ingrediente farto em terras tropicais. Mas foram as mulheres africanas as primeiras doceiras de fato, porque eram elas que, na prática, cozinhavam. E, nesse caminho, seus hábitos e gostos foram temperando nossas receitas açucaradas. Como escreveu o sociólogo Amurabi Oliveira, “os quitutes de tabuleiros preparados por mãos pretas com receitas lusitanas, temperadas com canela e outras especiarias, seriam o resumo da cultura brasileira”.

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Cora Coralina e outras doceiras

“O alimento faz parte da vida do brasileiro de uma maneira diferente. Ele é um elo forte com a socialização”, acredita a doceira Adriana Lira, que cresceu vendo as avós Anita e Isa sempre à beira do fogão. “Cresci ao lado do fogão a lenha, do cheiro do café torrado em casa, da comida sendo preparada em grande quantidade”, se recorda.

“Minha avó paterna, Anita, era católica, oriunda do judaísmo, estudou Rosa Cruz, trabalhava com a energia do Sol. Ela amanhecia falando ‘há uma rosa dentro de mim’, e cozinhar era sempre um momento de felicidade. Ela fazia a chamada rosca rainha e me explicava sobre o processo de fermentação para chegar no ponto certo da massa de um jeito lindo. Tudo era cheio de sabedoria, e a cozinha era esse espaço do saber”, conta Adriana, que, quando criança, adorava passear pela pequena Pirenópolis, cidade histórica de casarões antigos, próxima da capital goiana.

Foi lá que conheceu uma doceira de mão cheia chamada Cora Coralina, a poetisa. “Era lindo comprar doce de Cora. Eu a conhecia como doceira antes mesmo de ela se tornar escritora. Você entrava na casa dela, porque era comum a gente entrar na casa dessas mulheres para comprar doces cristalizados, e ela o recebia com uma paciência sem fim. Quando você escolhia o que ia levar, lembro-me dela pegando tudo com delicadeza e embalando um a um, em papéis graciosos. E não adiantava apressá-la. Ela os embalava no tempo dela. Foi a partir dessa experiência que comecei a perceber a beleza que um doce pode ter”, diz Adriana, que faz as flores de fita de coco mais encantadoras que já vi.

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Cora Coralina

Parte da história da poeta e doceira Cora está hoje registrada em Cora Coralina — Doceira e Poeta, livro feito a partir do caderno de receitas dela. No trecho do poema Quem É Você?, Cora reafirmava algo que disse diversas vezes: “Sou mais doceira e cozinheira / do que sou escritora, sendo a culinária / a mais nobre de todas as artes: / objetiva, concreta, jamais abstrata / a que está ligada à vida e / à saúde humana”.

Cora começou a cozinhar muito jovem para ajudar no sustento da família. Algo, aliás, que se tornou comum para várias outras doceiras. A venda das compotas, dos doces cristalizados, dos bolos, ajudava na renda da casa — ou poderia ser, até mesmo, a única fonte — e, dessa maneira, muitos pesquisadores consideram que o cozinhar foi ajudando a mulher a tecer uma posição de igualdade. Fazer bolo de tabuleiro foi, por exemplo, a forma encontrada pelas esposas dos bandeirantes de se sustentarem quando eles ficavam tempo demais desbravando territórios. O quitute era vendido pelas escravas que saíam pelas ruas com o tabuleiro na cabeça, oferecendo o bolo aos pedaços.

Nesse tempo, um caderno de receitas era algo precioso, porque ele guardava os saberes de uma família. Era um artigo passado para a filha, muitas vezes como presente de casamento. Foi dessa forma que toda uma história foi sendo construída por meio das anotações dos cadernos. Mas existia, também, uma sabedoria não registrada. Toda doceira sempre tinha — e ouso dizer que ainda tem — seus segredos guardados a sete chaves. Segredos que envolviam informações como o ponto certo para fazer a bala de coco ou para não deixar o doce de limão amargar. Para aprender era preciso observar.

Observar e aprender

Ficar num canto vendo a pessoa mais velha da casa cozinhar sempre foi fonte de aprendizado. A habilidade de uma doceira vai, dessa forma, além de seus escritos. Ela começa no momento de escolher a fruta, de cortá-la, no tempo que fica ou não de molho (algumas podem demorar dias nesta etapa), na quantidade de açúcar (que costuma ter a exatidão do olho de quem cozinha), no tempo de cozimento (se é feito no fogão a lenha ou a gás) e em algo intangível: a sensibilidade de quem faz. Uma doceira sente, ouve e percebe o que está cozinhando.

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Em sua pesquisa, Juliana Venturelli encontrou uma doceira que traduz bem isso, a mineira Hilma dos Santos Arantes, artesã de doces e bolos, uma confeiteira, como ela se denomina. Juliana acompanhou Hilma na confecção da bala de coco. “As sutilezas dos sinais do ponto certo seguem uma lógica nem um pouco racional. Na hora da finalização da bala, fecham-se todas as janelas para não entrar vento e começa a magia do tecido perolado. É muito puxa, dobra e estica. E o que ajuda a doceira a descobrir o ponto da bala é o barulho que o doce faz”, conta Juliana.

Somos feitos de conhecimento e raiz

Sim, Hilma costuma dizer que o ponto certo está no tinir. É assim que ela sabe se o doce está pronto, e isso, claro, é algo que não cabe nas palavras. Precisa ir além. É por isso que Juliana acredita que uma maneira de perpetuar essa sabedoria é desenvolver programas de encontros nas escolas e nas comunidades entre avós e netos, doceiras da região e jovens. É por meio dessas trocas que o conhecimento pode se manter vivo. E nos mostrar de onde viemos e para onde estamos indo. Que somos feitos de novos conhecimentos, mas também de raiz. E que essa raiz precisa estar firme para nos tornar mais fortes. Que a gente siga comendo doces de compota, cristalizados, artesanais — nas festas, mas também na vida de todo dia. Porque, como diria Adriana Lira, “você só consegue entender o que é um doce depois que ouve a história”.

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